segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Adivinhe quem vem para roubar



Em 1993, Caio F. escreve sobre a volta dele. De quem? "não digo nem escrevo o nome dele", ele escreve. "E não digo que volte direto por cima (embora seja essa a meta), mas passo a passo. Deputado, senador." Pois, quase 25 anos depois dessa coluna de Caio, o tal anuncia que está na disputa à presidência. Abaixo a coluna

                                         Adivinhe quem vem para roubar

Fiquem atentos, ele quer voltar. Nas últimas semanas, aqui e ali pelos jornais, encontro notas sobre a mudança para São Paulo, sobre o livro que está escrevendo e até mesmo algum artigo estofado de palavras gordas tipo justiça, pátria, dignidade. Em fotos recentes, continua com aquele ar entre o pinguim de geladeira e ator canastrão de melodrama chicano, agora acrescido de certa aura estudadamente humilde. Como se quissesse deixar bem claro que sofreu-e-aprendeu-com-o-sofrimento. Atenção, a cilada está se armando. Como antes, tão lenta que mal se percebe.

Porque ele é espertíssimo. E não digo que volte direto por cima (embora seja essa a meta), mas passo a passo. Deputado, senador. No começo, não recusará os mais insignificantes espaços da mídia - e esta, o que é horrível, lhe dará espaços cada vez maiores, mais nobres. (Se é que se pode usar a palavra "nobre" em situação desse tipo.) Também porque virá o livro, e haverá o pretexto de divulgá-lo e naturalmente vendê-lo. Aos quilos, lógico. Tudo é business, aqui e no Haiti.

Até que, num final de semana, você vai tropeçar na cara dele na capa das principais revistas do país. Humílimo, sofridérrimo, luzes acentuando certas rugas amargas, certas sombras, quase santo. E enquanto rolarem inimagináveis conchavos políticos por trás, a imagem começará a nos bombardear de novo. Já imagino os sentimentos coletivos a serem utilizados em slogans autopunitivos e maquiavélicos: erramos, fomos injustos, nunca é tarde para corrigir um erro. Ele vai declarar que tinha certeza de que não o deixariam só, como pedira, que o povo brasileiro, minha gente, não o trairia, que agora sim vamos retomar o crescimento e a arrancada em direção ao século XXI e patati-patatá, lembram?

Quando chegar o momento, virão votos em penca das regiões mais medonhas do país. Como da outra vez. Haverá fraudes, acidentes providenciais em caminhões que conduziriam eleitores do outro candidato - e isso y otras cositas, jamais será esclarecido. Em seguida, estonteantes viagens internacionais, superjatos, transatlânticos, jet skis, talvez um novo casamento (o anterior, convenhamos, é difícil reabilitar). Sugiro: Lady Di após o divórcio, ou Madonna (já que ela vem aí, não custa tentar. No caso de elas não toparem, quem sabe Sula Miranda (aquela porção sertaneja)? E por que não Xuxa, tão solitária e combalida sob o peso daquela estressante montanha de dólares?

Calma, também não precisa delirar... mas ele quer voltar, do fundo mais lodoso de minha paranóia congênita - acho claríssimo. Ele sabe que, das muitas doenças graves que afligem o país, a mais grave é talvez não suportar a própria cara. Como da outra vez, quando em vez da rude cara operária do outro preferiram a empoada dele, simulacro estúpido dos galãs de TV. Como se votando nele se tornassem ele.

E os caras-pintadas, meu Deus, vão ficar com as caras no chão! Aprenderão na carne aquilo que sempre ouviram dizer: o Brasil, meus filhos, é um país sem memória. Tanto que, até hoje, ainda não percebeu que este horror onde estamos atolados não passa do saldo legado por ele. A impunidade para ele e seus capangas nos deixou uma inversão moral nojenta: se você é honesto, você é trouxa. Não viram ele? Se ainda não, arregalem bem os fatigados olhos: exatamente um ano depois de ter sido corrido, armando todas para voltar.

Não digo nem escrevo o nome dele. Como aquela palavra, o contrário de sorte, cuja carga negativa desaba sobre quem a pronuncia. Pois isso é o que vai acontecer a quem se deixar enganar outra vez. Não digam que não avisei. Só vai ser difícil me achar para dizer qualquer coisa. Porque se isso acontecer mesmo - além da imaginação - peço aos amigos que me joguem num hospício e me deixem lá. Incomunicável.

                     O Estado de S. Paulo, Caderno 2, 3 de outubro de 1993





Nenhum comentário:

Postar um comentário