sábado, 15 de setembro de 2018

Caio F. no Roda Viva

Caio F. no Roda Viva com Raquel de Queiroz

Houve dois momentos marcantes de Caio Fernando Abreu no programa Roda Viva.  O primeiro e polêmico foi como entrevistador da escritora Raquel de Queiroz https://www.youtube.com/watch?v=q0NHxLbaN5w. Quatro anos depois, em 1994, depois de ter revelado ser HIV positivo, ele voltou ao programa, agora como entrevistado (Não encontrei a entrevista no Youtube). Caio comentou esses dois momentos, em entrevista à Maristela Barrios, publicada no primeiro número da revista Sui Generis, em janeiro de 1995. http://caiofcaio.blogspot.com/search?q=conhecendo+o+para%C3%ADso 


 "Numa emissora de TV, há quatro anos, tive um entrevero no ar com a Raquel de Queirós, aquela latifundiária improdutiva e extremamente reacionária – num programa semanal em que eu era sempre um dos convidados  Depois disso, nunca mais me chamaram para nada, a não ser há algumas semanas. E era o mesmo entrevistador, a quem eu lembrei o fato e que, durante uma hora, não me olhou nos olhos. Mas uma das coisas boas do vírus é que fica assim... um grande caguei. Não tenho nada a perder, a única coisa que posso perder é a vida. Então, quero mais é dizer o que penso, o que realmente sinto, coisas que são verdadeiras pra mim e que podem ser úteis aos outros. Porque eu acho que sou uma pessoa legal, como costuma dizer a Gal Costa. Eu vivi uma porção de coisas, posso dizer coisas boas e más também. Como falava Mae West, ‘quando sou boa, sou ótima, mas quando sou má, sou melhor ainda’."


quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Angela e Cauby: para roubar uma lágrima furtiva



Para marcar o dia em que seria o dia dos 70 anos de Caio F, uma postagem especial. Esta belezura de texto não está em Pequenas Epifanias e nem em A Vida Gritando nos Cantos, os livros que reúnem as crônicas que ele escreveu no Caderno 2 do Estadão. Esta saiu no formato matéria sobre um show de Angela Maria e Cauby Peixoto. Pra falar dos dois cantores, Caio convoca uma protagonista: tia Vilma, que embalou sua infância com canções. O resultado é uma maravilha e o "lágrima furtiva" não está no título por acaso. Uma pequena epifania essa crônica/matéria.

             Angela e Cauby: para roubar uma lágrima furtiva

Tenho uma tia chamada Vilma. A Vilminha, como a chamam até hoje as freguesas de costura, ou Pavima para nós, seus 500 sobrinhos. Solteirona, romântica, alucinada, tia Vilma amava no ar. Nunca se soube de um namorado seu. Tia Vilma lia fotonovelas, e cantava. Ah, como cantava, derramando vezenquando uma lágrima furtiva. Me ninava nas noites frias com seu repertório heavy: Dalva de Oliveira, Nora Ney, Linda Batista. Ao invés de Bicho Papão, dê-lhe Risque; e tome Vingança, ao invés de Boi da Cara Preta. Com dois, três anos, eu dormia no colo virginal Pavima, ouvindo Ninguém me Ama. Com cinco ou seis, cantava com ela obras completas de Lupicínio Rodrigues. Essas coisas marcam fundo, vocês sabem. Podem marcar pra sempre, gravemente até: fazem a fortuna dos psicanalistas quando a gente fica taludinho...


Sandro Moretti: galã de fotonovela
E Angela e Cauby, Pavima cantava. De Angela, muito Cinderela. Cauby, puro descorno, ela adorava. Lembro de uma porta interna de guarda-roupa - lembro mais do mosqueteiro suspenso, de filó branco, sobre a colcha de renda (quarto de moça), da janela aberta sobre o pátio cheio de begônias - e daquela porta interna do guarda-roupa com fotos de Cauby e Sandro Moretti. Cauby de bigodinho, orelhas meio de abano. Fino, sóbrio. Usasse faca, tia Vilma puxaria a dela, bem afiada, se alguém ousasse chamar Cauby de "maricão". E como chamavam!

Tivesse eu Pavima por perto - e não lá nos ermos de Itaqui - hoje à noite a levaria para assistir Cauby e Angela em "As Vozes". Talvez, suprema subversão, conseguisse fazê-la beber pelo menos uma vodka. Não, não me atrevo a imaginar tanto. Um singelo copo de vinho, branco naturalmente - quem sabe? Eu ficaria de porre total, lógico, e falaríamos de todo esse tempo que se foi, e dos que morreram, e dos que se descaminharam, dos que a vida feriu fundo, e dos que sofreram duramente por amor (ou falta de). Com Angela e Cauby ao fundo, talvez a velha - muito velha - e boa - boa no sentido vasto da generosidade - Pavima revelasse enfim seu grande segredo indizível. Que deve haver um, fatal. Sobre uma história que não houve. Homem casado, talvez? Um cunhado, um oficial do exército, um estudante pobre? Que vil sedutor, meu Deus?

Ao som das vozes de Cauby e Angela, eu e Pavima. Eu ficaria pensando qualquer coisa meio longa e complicada, como esta, assim: amar de paixão tresloucada ou detestar com as mais recônditas fibras do self, achar breguésimo ou tão brega, mas tão brega que (como o princípio zen do yin e do yang) chega a ficar requintadamente chique, qualquer dessas atitudes, intelectuais ou emocionais, em relação a Cauby e Angela não têm nada a ver.Se eu pudesse ver, do outro lado da mesa, os olhos muito cansados e quase azuis de tia Vilma por trás dos óculos de lentes grossas, teria ainda mais certeza que Cauby e Angela pairam infinitamente acima dos nossos pobres e preconceituosos padrões críticos.

Mas claro que, se eu quiser, posso colocar imediatamente o disco dos Inocentes e acabar com este clima. Mas é este clima que não acabam, como não acabam Angela e Cauby, as vozes que só por soarem, independente do que dizem, trazem de volta o passado de um país inteiro. Fico remexendo à toa em fotos e recortes antigos. Anoto os nomes dos oito irmãos da operária Abelim Maria da Cunha (Angela): Abdmar, Abiezer, Ablair, Abiail, Abladina, Abdiel, Abmael e Abedil. Parece uma oração. Encontro um elogio de Louis Armstrong, outro de Elis, à voz de Sapoti (e aquele agudo?). Vou mais fundo até encontar - juro - o registro de uma dança da inteiramente dark de Cauby, em 1952. Detalhes não posso dar. Mas é forte. Aliás, com suas antenas mutantes, o Supla pegou esse lado do Cauby. E Elis, quando gravou com ele o infernal Bolero de Satã: "Agora me assalta a aflição de chorar louco e só de manhã".

Tia Vilma/Pavima/Vilminha teria hoje talvez uma das melhores noites de sua vida em sépia. Ficaríamos numa mesa ao fundo, cúmplices. Tenho certeza que ela cantaria junto Vida de Bailarina, bem baixinho. E fingindo limpar os óculos, enxugaria muito dissimuladamente - mas não tanto que eu não percebesse - outra daquelas furtivas lágrimas

                  O Estado de S. Paulo - Caderno 2 - Sexta-feira, 6 de junho de 1986

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

'Adeus, Brasil Cruel'





Essa entrevista foi há 28 anos. Caio F., 42 anos recém completos, acabara de lançar "Onde andará Dulce Veiga?", quando conversou com Geneton Moraes Neto (1956-2016). Saiu em O Globo, edição de 30 de setembro de 1990, quase seis anos antes da morte do escritor. É das melhores entrevistas dele, que vivia desencanto com o País e funciona como uma mini biografia.

                                                 'Adeus, Brasil Cruel'

Quando lançou "Morangos Mofados", em 1982, você dizia aos que lhe cobravam um romance: "Quando alguém se dispuser a me dar uma mesada que me livre da obrigação de trabalhar oito horas por dia, compareço com um romance". A esperada mesada chegou para que você pudesse escrever "Onde andará Dulce Veiga?"?
Meu editor, Luis Schwarcz, me pagou durante um ano enquanto eu escrevia "Onde andará Dulce Veiga?", U$ 350 por mês, no câmbio oficial. É pouquíssimo, dava cerca de Cr$ 20, 25 mil. Eu complementava com o que eu chamo de biscates culturais. Mas renunciei a tudo, porque o que me interessa é a literatura. Se eu não tinha dinheiro para jantar fora, fazia arroz integral com ovo frito. Andava a pé, pegava ônibus. Cortaram a luz. Cortaram o telefone. Mas eu precisava escrever. Isso aconteceu comigo, no plano pessoal. Quanto à literatura brasileira - de uma forma abrangente -, concordo com Hilda Hilst, a maior poetisa brasileira viva, quando diz que hoje, no Brasil, escritor vale menos que um gato morto. Não há respeito. Não há divulgação. Não há amor pelo autor brasileiro. Nós estamos todos profundamente solitários, desencantados, separados. Então eu me senti abençoado por ter conseguido escrever o romance.

Você lamentava, há poucos anos, que o escritor brasileiro fosse "um escritor de fim de semana". A situação piorou nos últimos tempos?
Piorou, e por isso estou indo embora do País. Vou lançar livros na Europa no fim do ano e ficar na Espanha, em Ibiza. Amo profundamente o Brasil. O meu livro é desesperadamente brasileiro. Preciso ficar longe dessa paixão, para que ela não me destrua. Eu serei um exilado literário.

Você espera encontrar na Europa, como escritor, o que não encontrou no Brasil?
Não, não e não. Vou ser, na Europa, um paquistanês. Não tenho ilusão. Já morei em Londres e Estocolmo. Eu era profundamente rejeitado e chamado de negro, índio, chicano. Mas vou: é como o Paulo Coelho aconselha: de sete em sete anos, jogue a vida para o alto e saia à procura de outra, porque teu destino pode estar à tua espera num boteco em Atenas. Se você não for, não vai encontrar. Sou um rolling stone. Isso pode ajudar a minha literatura e meu profundo amor pelo Brasil - cada vez mais enlouquecido, o meu amor por este País cruel.

Dentro da literatura, a que santos e demônios você recorre?
Santos ou demônios, minha relação é sempre com a luz. "Onde andará Dulce Veiga?" se encerra com uma oração de Clarice Lispector: "Ah, força do que existe/ Ajudai-me!/ Vós que chamam de o Deus". Fui preso em Londres, numa livraria, roubando a biografia de Virginia Woolf, escrita por Quentin Bell. Fiquei três dias na prisão. Só fui ler a biografia há poucos anos. Quando fui preso, fiquei sem o livro. Mas, desde então, ela me protege - Virginia.




Você descreveu há pouco a precaridade que enfrentou durante o período em que escreveu "Onde andará Dulce Veiga?". Mas esta precariedade palpável na vida real não transparece no texto. Críticos já notaram que você escreve com elegância. Você escreve com raiva, também?
Sou, no fundo, uma senhora inglesa. Muitas pérolas. Muito tailleur. Muita seda. Mas sou cafajeste, também. Num dos capítulos, antes de tomar um táxi, o personagem cruza na rua com dois anões, um corcunda, três cegos, quatro mancos, um homem-tronco, outro maneta, um enrolado em trapos como um leproso, uma negra sangrando, um velho de muletas, duas gêmeas mongolóides e tantos mendigos que não consegue contar. Aquela cena, no livro, é a raiva da realidade brasileira, é ódio do Terceiro Mundo. Tenho ódio, repulsa, desprezo, repugnância, pelo que fizeram com o Rio de Janeiro. Como é que nós, brasileiros, a nossa geração, os jornalistas, os intelectuais, permitimos que o País virasse essa bagunça?

Você também é jornalista. Fazer jornalismo é ruim para a saúde mental e física de um escritor?
É. Para o escritor - um ficcionista que se alimenta de sonho, ilusão e fantasia - é melhor ser jardineiro ou sapateiro do que se submeter ao vão comércio da palavra. Trabalhei na Editora Abril. Passei pela revista "Nova". Por mês, escrevia cinco matérias sobre sexo anal, sexo oral... Quando me dei conta, tinha ido parar na Divisão de Fascículos, onde estava escrevendo receita de cozinha. Juro! Tive uma indignação total. Pedi demissão. Disse: "Se eu continuar, amanhã de manhã vou me olhar no espelho e cuspir na minha cara!". Fiquei duro. Mas saí. Não admiti. Nélida Piñon é que diz: se você é escritor no Brasil, todo dia ouve alguém bater na porta para aconselhá-lo de maneira convincente a desistir. É preciso agarrar a literatura pelos cabelos, como Clarice Lispector fez, numa luta diária.

Você uma vez listou, entre os personagens que o fascinam, "as prostitutas, os negros, os homossexuais, os bêbados, os loucos, os suicidas, os exilados, os mendigos, os endemoniados". A arte que se alimenta da maldição é menor e mais viva?
É mais viva porque vive "perto do coração selvagem da vida", como diria James Joyce. Sou feliz. Sou a pessoa mais careta do mundo. Minha vida é toda ordenada. Tenho minha loucura sob controle. Mas os outsiders me interessam.

Você diz que José Saramago é "chatíssimo" porque não tem nada a ver com o que acontece na vida real...
De vez em quando, a gente fala coisas meio bobas que são distorcidas. Mas é verdade mesmo.

Você, então, prefere a literatura que possa fazer o leitor enxergar o que existe em torno de si?
Prefiro a literatura que ajude a alma do leitor a se questionar, a crescer e a evoluir. Prefiro a literatura que abale o leitor de alguma forma. Por exemplo, fiquei abalado quando li "O diário de Edith", de Patricia Highsmith. É a história de uma mulher que tem uma vida absolutamente banal, mas descreve, num diário, uma vida fictícia maravilhosa. Um livro assim perturba minhas reflexões sobre mim mesmo, sobre a sanidade, sobre a loucura, e sobre os limites da relação com o real. Prefiro este tipo de literatura - que é viva porque abala e não entra por um ouvido e sai pelo outro.

Cazuza, de quem você foi amigo, acaba de virar nome de praça em São Paulo e também no Rio, no Arpoador. A rebeldia deve virar monumento?
Quando quiseram transformá-lo num busto de bronze, Mario Quintana disse: "Cuidado! Um engano de bronze pode ser um engano eterno!". O que Cazuza deixou de melhor ficou nos discos e na bravura com que enfrentou a vida. Se virar nome de praça, tudo bem. Ser esquecido ou não ser esquecido, tanto faz. A posteridade é um tédio.


sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Adeus, agosto. Alô setembro



                                                     Mesmo aqui, no país bandido,
                                                     agosto sempre vai embora. E
                                                     setembro sempre volta, sim

Agosto, todo mundo sabe, nunca foi fácil. Este que nos deixou à meia-noite de ontem e pareceu durar uns seis meses, cumpriu a tradição. Levou Drummond, levou John Huston, Gilberto Freyre. O mais patético: levou Pixote. Ao saber do assassinato (é as-sas-si-na-to mesmo que eu quero dizer) dele, além de sentir uma vergonha viscosa de ser brasileiro, fiquei pensando assim – Deus, o que é que está acontecendo com este país? Imagino a praça de guerra (Líbano perde) em que se transformou o Rio de Janeiro e, na trilha sonora, ficou ouvindo Lobão berrar “vida, vida, vida bandida”. Em 1987, Lobão tornou-se a mais perfeita tradução de Brasil. Um país invadido pela corrupção, pela barbárie, pela violência policial, pela bandidagem. Você vai até a esquina comprar cigarros e não sabe se volta vivo.

Falei disso a um motorista de táxi. Sobre Pixote, ele disse: “Pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto”. Sobra a guerra da polícia com os traficantes, no Rio: “Bandido tem mais é que morrer”. Fiquei pensando: e, se tivesse educação, tinha bandido?  Se tivesse comida, tinha bandido? E se tivesse uma perspectiva qualquer de futuro no ar, tinha bandido? Se houvesse um mínimo de alguma coisa levemente parecida com “felicidade”, “dignidade”, “justiça?”. Quem inventou essa violência desenfreada que tomou conta do País não foram os marginais – foram os poderosos. Se eu desculpo bandido? Desculpo sim. Não desculpo é marajá. Não desculpo Zé Sarney no comando desta barca de Medusa, navegando em mar de sangue – em direção a que abismo?  Ninguém sabe, temos medo.

Passadas as águas de agosto, ontem inaugurou setembro. E por não apostar no País, aposto em setembro (“se o mundo é um lixo, eu não sou”). De saída, tem uma coisa linda que eu vou contar pra vocês. É assim: tenho quatro irmãos de sangue em Porto Alegre, e – graças a Deus – talvez uns 20 irmãos de alma soltos pelo mundo. Esta semana, dois deles estão aqui, vindos de Porto Alegre para apresentar no Madame Satã um trabalho chamado Lenta Valsa de Morrer.

Ivan, Adriana e Eliane: Lenta Valsa de Morrer
Eles chamam-se Ivan Mattos e Eliane Steinmetz (Eliane é “a Gorda” – emagreceu, mas o apelido ficou), atualmente também conhecidos como “os loiros” porque, como diz o Bivar, oxigenaram um pouco. Ivan e Gorda são das pessoas  mais engraçadas que conheço, e das mais talentosas. Não estão mais cabendo em Porto Alegre, a cidade-carroça, e vieram mostrar esse trabalho para quem quiser ver. São textos de Clarice Lispector, do alemão Heiner Müller, do gaúcho Renato Campão – e também meus. Tudo isso embalado pela voz de Adriana Calcanhotto, uma supercantora (quem perdeu o show dela no Off, semana passada, dançou), com participação de Adriane Mottolla, uma moça muito chique, e figurinos de Zé Adão Barbosa, um moço também muito chique. Na direção, outro irmão de alma: Luciano Alabarse. Pinta lá pra ver. Eles vão gostar, você também.

Se estou fazendo propaganda dos meus amigos? Lógico, meu bem, você acha que eu ia fazer propaganda dos meus inimigos? Sinto/sei que, de cada vez que o horror arreganha os dentes – assassinam Pixote, o Rio vira Líbano -, se a gente estiver atento, no minuto seguinte a velha Dona Vida, essa senhora imprevisível e nem sempre respeitável, faz uma pirueta no trapézio para mostrar a outra face. Não a de megera medonha, sanguinária, mas seu avesso: a fada suave, revelando o talento de gente moça. Ivan, Eliane, Adriana, moçada que já nasceu com os militares no poder, sem esperança nem fé, rolando de rir de tudo, com um jeito insólito de captar o sério das coisas. Não o sério clichê, o sério careta – mas um olho novo de pegar o mundo. Esse jeito existe, eu já vi. Cada vez que olho para Ivan e Gorda, cada vez que ouço Adriana, ele está lá.

Como setembro. Mesmo aqui, no País Bandido, agosto vai sempre embora, e setembro sempre chega. Se você quiser, claro. Porque, como aquele motorista de táxi, você pode achar que bandido é bandido, tem que ser morto. Quanto a mim, acho que todo mundo tem mais é que viver. Ser feliz. Agora, dá licença, vou escancarar a janela, tomar um banho e me preparar para este setembro que ninguém vai sujar. Em mim, não mesmo.

                                              OESP, Caderno 2, Quarta-feira, 2 de setembro de 1987

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Caio F. no Bixiga




O Teatro do Incêndio fez uma bela homenagem aos grandes nomes da cultura nacional. 376 nomes de atores, escritores, dramaturgos, cantores tomam conta das paredes brancas do prédio, localizado na esquina das ruas Santo Antônio e 13 de Maio, no Bixiga, SP. E o nome de Caio F. está lá, em destaque, bem acima do nome do teatro.  

O prédio abrigou a lendária Boate Igrejinha, famosa por shows de música brasileira. Foi lá, por exemplo, que Maysa fez seu último show.

Aqui, a descrição da fachada do Teatro do Incêndio, no site deles.

"A parede externa de entrada do Teatro do Incêndio tornou-se um grande painel com a inscrição de 376 nomes de artistas de real importância na história cultural. Entre os homenageados, Tom Jobim, Cacilda Becker, Plínio Marcos, Flávio Império, Mário de Andrade, Carolina de Jesus, Maysa, Geraldo Filme, Roberto Piva, José Celso Martinez Corrêa, Batatinha, Ariano Suassuna, Darcy Ribeiro, Antônio Cândido, Ruth Rachou, José do Patrocínio e Lygia Clark."

Na parede do Teatro do Incêndio, Bixiga/SP

Na parede do Teatro do Incêndio, Bixiga/SP


quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Sugestões para atravessar agosto, crônica escrita no último agosto de Caio F.


Essa crônica foi escrita há 23 anos, no último agosto que Caio F. viveu e publicada no domingo, 6 de agosto de 1995, no Caderno 2, do jornal O Estado de S.Paulo. Boa leitura.

Sugestões para atravessar agosto

Para atravessar agosto é preciso antes de mais nada paciência e fé. Paciência para atravessar os dias sem  se deixar esmagar por eles, mesmo que nada aconteça de mau; fé para estar seguro, o tempo todo, que chegará setembro - e também certa não-fé, para não ligar a mínima às negras lendas deste mês de cachorro louco. É preciso quem sabe ficar-se distraído, inconsciente de que é agosto, e só lembrar disso no momento de, por exemplo, assinar um cheque e precisar da data. Então dizer mentalmente ah! escrever tanto de tanto de mil novecentos e tanto e ir em frente. Este é um ponto importante: ir, sobretudo em frente.

Para atravessar agosto também é necessário reaprender a dormir, Dormir muito, com gosto, sem comprimidos, de preferência também sem sonhos. São incontroláveis os sonhos de agosto: se bons, deixam a vontade impossível de morar neles; se maus, fica a suspeita de sinistros augúrios, premonições. Armazenar víveres, como às vésperas de um furacão anunciado, mas víveres espirituais, intelectuais e sem muito critério de qualidade. Muitos vídeos, de chanchadas da Atlântida a Bergman; muitos CDs, de Mozart a Sula Miranda; muitos livros, de Nietzsche a Sidney Sheldon. Controle remoto na mão e dezenas de canais a cabo ajudam bem: qualquer problema, real ou não, dê um zap na telinha e filosoficamente considere, vagamente onipotente, que isso também passará. Zaps mentais, emocionais, psicológicos, não só eletrônicos, são fundamentais para atravessar agosto.

Claro que falo em agostos burgueses, de médio ou alto poder aquisitivo. Não me critiquem por isso, angústias agostianas são mesmo coisa de gente assim, meio fresca que nem nós. Para quem toma trem de subúrbio às cinco da manhã todo dia, pouca diferença faz abril, dezembro ou, justamente, agosto. Angústia agostiana é coisa cultural, sim. E econômica. Mas pobres ou ricos, há conselhos - ou precauções - úteis a todos. O mais difícil: evitar a cara de Fernando Henrique Cardoso em foto ou vídeo, sobretudo se estiver se pavoneando com um daqueles chapéus de desfile a fantasia categoria originalidade... Esquecê-lo tão completamente quanto possível (santo zap!): FHC agrava agosto, e isso é tão grave que vou mudar de assunto já.

Para atravessar agosto ter um amor seria importante, mas se você não conseguiu, se a vida não deu, ou ele partiu - sem o menor pudor, invente um. Pode ser Natália Lage, Antonio Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o seu dentista. Remoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto, viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún ou Miami, ao gosto do freguês. Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros, juras, projetos, abraços no convés à luz da lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados.

Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se ou lamuriar-se, e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques - tudo isso ajuda a atravessar agosto. Controlar o excesso de informação para que as desgraças sociais ou pessoais não dêem a impressão de serem maiores do que são. Esquecer o Zaire, a ex-Iugoslávia, passar por cima das páginas policiais. Aprender decoração, jardinagem, ikebana, a arte das bandejas de asas de borboletas - coisas assim são eficientíssimas, pouco me importa ser acusado de alienação. É isso mesmo; evasão, escapismo. Assumidos, explícitos.

Mas para atravessar agosto, pensei agora, é preciso principalmente não se deter demais no tema. Mudar de assunto, digitar rápido o ponto final, sinto muito perdoe o mau jeito, assim, veja, bruta e seco:.

domingo, 29 de julho de 2018

Caio F. e a festa erótica de Hilda Hilst




Era o comecinho dos anos 90, Hilda Hilst tinha acabado de publicar O Caderno Rosa de Lori Lamby, a primeira de suas histórias "pornográficas". Ela vem passar uns dias em São Paulo para realizar exames no coração e dá essa entrevista para o amigo (e discípulo) Caio Fernando Abreu. Foi publicada na revista A-Z, onde Caio trabalhava, e as fotos são de Gal Oppido. É das melhores de Hilda e não está incluída em Fico Besta Quando Me Entendem, livro que reúne entrevistas com Hilda.

                              A Festa erótica de Hilda Hilst
                           Caio Fernando de Abreu


Aos 60 anos de idade, com mais de vinte livros publicados (o primeiro é de 1950) de poesia, ficção e teatro, formada em Direito sem nunca ter exercido a profissão, desde 1967 recolhida à Casa do Sol, um sítio próximo de Campinas, depois de 40 anos de literatura (e, segundo ela, silêncio sobre seu trabalho), há três meses Hilda Hilst caiu como uma bomba nos meios literários brasileiros.

Com a publicação de O Caderno Rosa de Lori Lamby, Hilda renunciou publicamente à literatura dita "séria" - que lhe conferira, por parte do crítico Leo Gilson Ribeiro, o epíteto de "o maior escritor vivo em língua portuguesa" - e decidiu publicar, daqui para a frente, apenas histórias pornográficas. Bem-sucedidas, essas histórias, já em segunda edição por Massao Ohno Editor, serão seguidas por Contos de Escárnio e Maldizer, a ser lançado em setembro, pela Siciliano, e pelo Diário de um Sedutor, a sair em 91.

Passando alguns dias em São Paulo para realizar alguns exames no coração - nada de grave, talvez o coração do poeta esteja apenas cansado -, Hilda Hilst falou com exclusividade para A-Z.

LUCIDEZ
"Quanto mais você fica lúcido, mais perigosa também fica a vida. Eu cheguei num determinado momento, depois de repensar, trabalhar e meditar sobre a finitude e o descontentamento do homem, em que tudo se tornou muito terrível, fatal, desesperado.
Depois de trabalhar muitos anos nesses temas, você chega num momento perigoso. Você pode enveredar por caminhos terríveis, e há momentos em que não há mais onde chegar, onde mexer, principalmente se existe uma busca muito avassaladora dentro de você. Depois de ter escrito tudo que eu escrevi, e eu sei que escrevi lindamente, que modifiquei a prosa narrativa, eu tenho plena consciência disso, não aconteceu nada. Fiz uma revolução na língua portuguesa, enfoquei os problemas mais importantes do homem, procurei fazer o possível para o outro se conhecer. Fiz um lindo trabalho. E não aconteceu absolutamente nada, não fui lida. Houve apenas dois homens que se detiveram em meu trabalho: Leo Gilson Ribeiro e Anatol Rosenfeld."

ENGODOS
"Não acho que eu tenha que sair pelas ruas falando sobre meu próprio trabalho. Um escritor não tem a obrigação de falar bem, e além disso eu teria que ser uma beleza, fisicamente, porque as pessoas dizem "ih, ela está velha, ih", você viu. Nunca deu certo uma mulher medonha falar, só a Rosa de Luxemburgo, que era medonha e fazia multidões ficarem vidradas diante dela. É um desgaste pessoal enorme: além do dom da palavra, você tem de ser agradável, charmosa, aparecer com uma boa roupa. Tudo isso custa dinheiro, esforço, energia; você tem de dispender essa energia escrevendo, e não se mostrando. Tenho certeza de que, se eu aparecesse, daria certo. Mas eu considero isso um engodo."


PORNOGRAFIA
"Não foi a pornografia que me atraiu: foi a leveza. Achei que, para o meu músculo mental continuar ativo, eu devia optar pela leveza. Fiquei mais feliz assim. Eu só me divirto, não sei dar nome a esse riso, não sei se é pornográfico. Escrever livros como O Caderno Rosa modificou basicamente a minha vida: está sendo uma festa para mim. Estou contente lá dentro, começo a escrever e rio muito. Claro que, se isso não me divertir mais, eu vou parar de fazer. Mas vou até onde o meu fôlego de humor permitir, porque tem sido delicioso, para mim, agora, escrever. Era uma grande dificuldade antes, eu tremia diante da página. Então, enquanto for uma coisa feliz, eu vou continuar fazendo esse tipo de literatura."

NUDEZ
"Toda essa discussão sobre nudez na tevê e coisas assim parecem coisa vitoriana. E completamente tolo. Penso sempre em Theodor Schroeder, que diz que não existe um quadro ou um livro pornográfico, existe é um olhar diante daquilo. Hoje você morre de rir com O Amante de Lady Chaterley, do Lawrence. Ninguém mais fala aquele tipo de coisa que equivaleria a dizer "deixa-me oscular tua rósea orquídea". Todo mundo tem medo de nomear o corpo humano da cintura para baixo, isso é absurdo."

DROGAS
"As únicas drogas que não são tão perigosas são o álcool e o cigarro, talvez a maconha. Tem coisas medonhas, a heroína, aquela coisa que se fuma, o crack. Deviam mostrar os drogados morrendo, como também deviam mostrar os aidéticos morrendo. Deviam mostrar o terror mesmo."

EDITORES
"Eles são uns canalhas, os editores, a verdade é essa. Mandei uma caixa deste tamanho ao Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras, com tudo que eu tinha escrito. Quando telefonei, ele foi seco. Simpático, educado e tal, mas seco. Entendi logo que ele não estava interessado. Ele, aliás, faz um tipo de coisa que já vem pronta; ele entrega o que já fez sucesso lá fora. O Caio Graco, da Brasiliense, foi a primeira pessoa a quem mandei O Caderno Rosa. Ele me disse ao telefone: "Não posso publicar, é chocante e escabroso". É um absurdo o que o editor faz com o escritor brasileiro. É ridículo, depois de 40 anos de trabalho, você receber como eu recebi por Com Meus Olhos de Cão, 30 mil cruzados em quatro anos. Eles não têm nenhuma vontade real de que o escritor apareça. É uma máfia. Parece que você tem de chupar o pau do editor, ser amante do amigo, uma loucura."


IMPRENSA
"Aquela matéria na Folha de São Paulo foi desagradabilíssima. Nenhum verdadeiro escritor escreve por fama ou dinheiro. O Camarada escreve por compulsão interior; nós somos uns obsessivos. Mas, de repente, numa cólera enorme, você deve desejar fazer alguma coisa para chamar atenção - não para você, mas para seu trabalho. Por que as grandes revistas não dão nada sobre literatura brasileira? Você pode ficar pelada amanhã na Barão de Itapetininga, como um gorro vermelho, que, se for um escritor brasileiro, nem assim você sai na Veja. Outro dia saiu no Caderno 2 do estadão uma porção de críticos falando sobre os melhores livros do mundo. Eles citaram basicamente autores estrangeiros - Joyce, Dostoievski, Stendhal -, mas nenhum deles citou a Clarice Lispector. Eu liguei para o Luiz Carlos Lisboa, no Jornal da Tarde, e falei: "Por que o JT não deu nada sobre a Lori Lamby?" Ele disse: "Hilda, São Paulo é uma cidade pudica". Muito bem, mas quando saiu a antologia de poemas eróticos organizada pelo José Carlos Paes, o Luiz Carlos Lisboa fez um artigo deste tamanho contando a história do erotismo a partir de Brahma, na Índia, e tal. E a antologia do José Paulo, por favor... erotismo é outra coisa - aquilo é pura bandalheira. Bandalheira da grossa."

PACTO
"Parece que os críticos adoram escritor morto. Você tem de morrer para ser lembrado. Eu até propus à Lygia Fagundes Telles: "Você atira em mim e eu atiro em você". Pode ser que assim falem da gente.

ESCRITORA
"Existe um grande preconceito contra a mulher escritora. Você não pode ser boa demais, não pode ter uma excelência muito grande. Se você tem essa excelência e ainda por cima é mulher, eles detestam e te cortam. Você tem de ser mediano e, se for mulher, só faltam te cuspir na cara. Há anos a Heloneida Studardt me disse: "Hilda, se você fosse um homem, escrevendo a prosa que você escreve, você seria conhecida no país inteiro."

OBSCENIDADE
"Quando foi publicada a minha novela Kadós, o Massao Ohno, que era o editor, mandou para uma gráfica que se chamava Santa Maria não sei do quê. Quando vieram as provas, sempre que aparecia a palavra cu, eles não punham. Aparecia co, ou ca, ou ci. Cu mesmo, nunca. O que há de errado com o cu, eu me perguntava. Eles achavam absurdo, deviam ser freirinhas ou noviços que manipulavam a gráfica, não sei. Obsceno não é o cu, mas as bombas Napalm. As verdadeiras obscenidades, as políticas, ninguém toca nisso."

SIMPÓSIO
"Ano passado eu fui nuns debates, uma coisa para educadores, e uma senhora me perguntou por que eu escrevia assim, dessa forma tão angustiada. Eu respondi: "Minha senhora, nós temos basicamente sete orifícios. Se a senhora não os lava a cada dia, a senhora fede. Isso não a angustia? Criou-se um problema horrível. Sim, a mim angustia profundamente ter de fazer essas coisas todo dia. Vem a história da finitudem da degradação do corpo. A carne acaba, e depois disso - depois disso, nada."

UNICAMP
"Tenho sobrevivido nos últimos anos graças à Unicamp. A Unicamp tem sido minha mãe, com o projeto Escritor Residente. Não sei se é a única, mas sei que foi a primeira universidade brasileira que fez esse projeto. A universidade devia ajudar mais o escritor brasileiro."

INTELECTUAL DO ANO
"Essa história foi muito engraçada. Acho que os membros da UBE (União Brasileira de Escritores) me escolheram pensando que não ia dar certo, claro que eu ia ter uns dois votos contra uns 300 do bispo Dom Paulo. Mas eu fui dando certo, ninguém sabe por que, e eu achando um absurdo - meu Deus, eu e o clero. Daí parece que houve alguma coisa terrível, parece que, pela Cúria, o Dom Paulo tinha de ganhar de qualquer jeito. Quando eu vi que não saía mais nada na imprensa, eu pensei 'bom, acho que ganhei, porque comigo é sempre assim, um silêncio absoluto'. Mesmo tendo perdido, agradeço a homenagem e tal, mas dá um pouco a impressão que 'intelectual do ano', é porque você ficou intelectual naquele ano, foi alfabetizada e ficou cultíssima..."

ALEMÃES
"Não sei bem por que, mas eu vejo o humor imediatamente nos alemães. Numa das histórias que escrevi, uma das partes mais engraçadas é um diálogo entre uma mulher e um alemão chamado Otto. Ele diz assim: 'non gostarr, senhora Eulália, do jeito que senhora chuparr o meu pau'. E ela: 'mas por que, seu Otto?'. E ele: 'Porque a senhorra fazerr cara de nojo, no gostarr'. E a mulher: "Bom, seu Otto, eu vou tentar fazer melhor e tal'. O alemão tem alguma coisa de hilário. Veja só vagina, em alemão, não lembro agora, mas é uma palavra deste tamanho, uma coisa absurda."

ANTI-AIDS
"Eu acho que o livro pornográfico é uma coisa anti-Aids. Lendo literatura erótica, você pode voltar a esse hábito solitário que várias pessoas extraordinárias acharam extraordinário também. Porque tem essa coisa católica, desde criança você ouve a mãezinha falando para o filhinho 'não se masturbe, meu bem, você vai morrer'. É o contrário: acho formidável hoje você ler um livro pornô e se masturbar. Não é melhor do que pegar Aids e morrer?"

CAZUZA
"Acho terríveis essas declarações que o Cazuza fazia: 'A droga me abriu a cabeça', 'A Aids é contra a sacanagem', 'Não sou um aidético casto'. Se eu ficasse aidética, me poria de joelhos no deserto, tomando água e só. Eu tive contato pessoal com a Aids através do meu sobrinho, que morreu em feverereiro. É horrível a pessoa morrer de Aids; não pode ficar essa imagem engraçada, porque é uma coisa horrenda. Esses tipos de frases do Cazuza são um absurdo porque você não pode brincar com essa coisa. As pessoas não podem pensar que é brincadeira."

LITERATURA
"A literatura tem de refletir o cara que está escrevendo, como ele é diante do mundo. A única forma de você passar alguma coisa real para o outro é já ter vivenciado aquilo, realmente. Você não pode mentir, quando escreve. A única coisa que não é permitida na literatura é mentir."

OUTROS ESCRITORES
"Existem ótimos escritores por aí. Existe, por exemplo, o João Silvério Trevisan, que é de primeira linha.Vagas Notícias de Melinha Marchiotti é excelente. Esse ensaio dele, Devassos no Paraíso, é o melhor ensaio que já li sobre homossexualismo. Ele demorou oito anos trabalhando, e não aconteceu nada, ele é recusado pelas editoras. Por que essa moça, Ana Miranda, conseguiu ser editada? Todo mundo já falou lindamente sobre Gregório de Mattos... O que acontece é que escritor brasileiro é um coitado. Os editores não aceitam o autor pensando, o autor brasileiro não pode pensar. Aqui está cheio de escritores bons para os editores investirem."

JECA-PORNÔ
"Adoro essas histórias que ando escrevendo com personagens rurais, ou que não sabem falar direito o português. É o que eu chamo de jeca-pornô, como a história daquele moço chamado Edernir, que está na Lori Lamby. Eu tenho um dicionário ótimo de palavrões, que o meu médico dermatologista me deu, dum cara chamado não sei o quê Souto Maior. É lindo, você precisa ver tudo que tem lá. Todos os sinônimos fantásticos de crica, vagina..."

PORNOGRAFIA II
"Ninguém chegou a uma conclusão sobre o que é pornografia. Me pergunto se seria o ultraje ao espírito do homem, seria uma coisa assim? Talvez o obsceno profundo, que seria um enfoque completamente diferente, seja aquele em que a lucidez do personagem é tão grande que a coisa fica obscena. Mas essas brincadeiras que tenho escrito, você não pode dizer que sejam obscenas ou pornográficas. E não entendo por que muita gente ficou tão ofendida com a Lori Lamby. Eu dei para Wesley Duke Lee ler, que eu julgava um homem do mundo, aberto e tudo, e ele disse: 'É horrível, Hilda. Que coisa horrorosa, é um lixo o que você escreveu'. Tenho um amigo, articulista de um grande jornal, que leu os Contos de Escárnio e Maldizer e falou: 'Não publique isso, porque é perigoso'. Não entendo, Aqueles contos da Anais Nin, por exemplo, são finos demais, delicados. Não são para tempos de Aids, as coisas têm de ser mais pesadas, para você ter aquele prazer que, lendo Anais Nin, você não tem."

LINGUA PORTUGUESA
"Eu sei que escrevo muito melhor que muitas mulheres européias e americanas. Mas quem é que fala o português? Bem, milhões de pessoas falam, mas ninguém lê nessa língua. Lá em Goa, Guiné-Bissau, Moçambique, todo mundo deve falar na feira: quanto custa esse tomate? e essa alface? O abacate está bom? Não adianta milhões de pessoas falarem, se ninguém lê. E até no caso de você querer ler um livro erótico a dois para se masturbar com o seu parceiro, vai ser dificílimo. Naturalmente, você teria de ir para a Europa ou Estados Unidos, porque, com 70% de analfabetos por aqui, vai ser difícil encontrar não só um parceiro, mas ainda por cima que leia."


terça-feira, 12 de junho de 2018

Caio Fernando Abreu volta à Companhia das Letras


Os Dragões Não Conhecem o Paraíso, Onde Andará Dulce Veiga e o póstumo Estranhos Estrangeiros saíram pela Companhia das Letras, em 1988, 1990 e 1996, respectivamente. Depois, a obra de Caio Fernando Abreu passou por várias editoras. Agora, a cia das letras anuncia a publicação de sete livros do autor. Contos Completos (capa acima), o primeiro, sai no final de julho. Com mais de 700 páginas, reúne os seis livros de contos de Caio F. e mais dez textos avulsos. Deve ser edição caprichada e Caio F. ficaria feliz com seus contos todos reunidos, como aconteceu há pouco com os de Clarice Lispector.

Abaixo, o folheto onde a editora anuncia o lançamento dos livros de Caio F. E na frente, um trecho do conto Os Dragões Não Conhecem o Paraíso



sábado, 9 de junho de 2018

Oracão à Paranóia



                                Publicado no Nicolau, jornal cultural de Curitiba, em 1989

terça-feira, 3 de abril de 2018

"É um escritor que nasce adulto": resenha do primeiro romance de Caio F.

Limite Branco, o primeiro romance de Caio Fernando Abreu, foi lançado logo após o livro de contos Inventário do Irremediável. Esta resenha foi publicada no Diário do Paraná, em 31 de janeiro de 1971. É interessante lê-la após tantos anos. Abaixo dois trechos:

"Com 22 anos de idade, Caio Fernando Abreu é alguma coisa mais que um escritor jovem, algo mais do que uma simples promessa: é um escritor que nasce adulto."

"Não se enganem: a sinceridade, a verdade pessoal e o dom de escritor destas páginas fazem delas não um simples romance de estréia, mas um romance talentoso e maduro."



domingo, 25 de fevereiro de 2018

A hora da estrela de cinema de Caio F.

22 anos da morte de Caio F. hoje. Aqui, a hora da estrela de cinema do belo: uma participação especial em Perfume de Gardênia, de Guilherme de Almeida Prado.



quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Viver é expor-se ao perigo. Escrever também



A capa

Era 1976 e Caio Fernando de Abreu foi um dos sete novos escritores brasileiros reunidos pelo jornal alternativo Opinião para falar sobre a literatura brasileira.  "Eles não são best-sellers, nem costumam dar entrevistas sobre o boom literário que, acreditam alguns, assola o país. São apenas escritores, cientes de que existem polêmicas mais urgentes do que, por exemplo, a divisão entre populistas e vanguardistas".  Sete autores contra o beletrismo e as panelinhas literárias era o título da matéria de capa da edição de abril, quatro páginas. Caio tinha  já havia lançado três livros: Inventário do Irremediável, Limite Branco e O Ovo Apunhalado. Abaixo o que ele falou na entrevista - segue a pergunta e sem o que os demais entrevistados falaram



A abertura da matéria

Opinião: Qual é o papel social do escritor no Brasil e na América Latina hoje em dia?

Caio F.: O papel social do escritor no Brasil, na América Latina e no mundo inteiro será sempre, e sob quaisquer condições, lutar pela liberdade de expressão.O intelectual será sempre um contestador. Denunciar, sempre, é a sua função. Denunciar a violência, a corrupção, a repressão, a intolerância. Ajudar na recuperação da dignidade humana.

Opinião: Mas existem fatores imediatos que agravam esta crise, que condicional hoje, de forma diferente, a expressão literária?

Caio F: Impossível separar, hierarquizar: é um todo. As barreiras do escritor brasileiro em relação à literatura são as mesmas do homem brasileiro em relação à vida. Ao outro. A si mesmo.

Opinião: Mas então não existem vínculos?

Caio F: O presente é sempre resultante do passado, uma consequência. Ninguém se desvencilha, facilmente, de suas origens, de suas raízes. Mas creio que um escritor deva ser fundalmente um homem de seu tempo. Seria ridículo, irreal e anacrônico escrever, em 1976, como Machado de Assis, por exemplo. Mas para compreender o presente, devemos conhecer o passado, a História. Para nos libertarmos do passado é necessário assumir o presente. E encarar o futuro, se é que ele existe.

Opinião: Parece que predomina, nesses termos, a personalização da obra, não há propriamente um movimento literário, em termos organizados, certo?

Caio F: Eu não sei, não... Dizem que escrever um romance hoje em dia  é procurar a melhor maneira de assassinar o romance. Não acredito nisso. O romance já foi assassinado por Joyce, faz muito tempo. E entre nós, por Oswald e Mario de Andrade. Não gosto dessa diferenciação conto-novela-romance. Existem textos de ficção. A rigidez só pode limitar. A liberdade total de criação é o caminho. Não só em literatura, mas em qualquer forma de arte, e também na vida.

Opinião: E que lugar ocupa o Realismo Mágico na literatura brasileira?

Caio F: O Realismo Mágico tem na literatura brasileira o mesmo lugar que em outros sistemas sociais semelhantes. Na medida em que não se permite ao artista ser claro, ele recorre à metáfora do presente. Mas também existe o pseudo-Realismo Mágico sem vínculo algum com a realidade. Não é nada disso. Trata-se, repito, de assumir o nosso tempo. Aqui e agora.

Opinião: E o autor jovem deve lutar, então, para ser editado?

Caio F: Lutar não só para ser editado, mas também para ser distribuído - o maior problema - divulgado e lido. Lutar sempre. Impor a nossa presença. Não permitir que nos vaporizem ou invisibilizem. Existimos e temos muito para contar, e acreditamos em nossas histórias, em nossas vivências. Se achamos que podemos dar ao outro algo de bom, então vamos lá. Fé cega e faca muito bem amolado. 1976 é o ano de São Jorge. Afiar a lança para matar novamente o dragão
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Opinião: Mas nós já discutimos os condicionantes, e já falamos a respeito do consumismo que grassa por aí. Lutar, certo, de peito aberto, sim, mas e os riscos que se corre?

Caio F: O risco a que eu me exponho, publicando, é o mesmo que corro estando vivo. Mas, realmente vivo, consciente e participante. Viver é expor-se ao perigo. Escrever também. Sempre tem um Hélio Pólvora nos acusando de plagiar um conto que nunca lemos. Medo? Porquê? Se não somos editados, não somos distribuídos, não somos divulgados, não somos lidos e nem sequer respeitados em nossa integridade, o que temos a perder?

Opinião: E não é nesse contexto que se formam as panelinhas?

Caio F: Existe uma lealdade básica que não deveria ser atraiçoada. As coisas só são fortes se forem grupais. Divisões internas, competiçoezinhas provincianas, panelinhas? Ridículo e inútil. Como diz Nei Duclós, poeta gaúcho, em Outubro: "Confio na solidão que nos une / e na vontade de quebrar tudo / que cresce aos poucos como um fruto".