terça-feira, 5 de julho de 2016

Infinitivamente pessoal


A lua completa mais de uma volta 
pelo zodíaco. E o anjo 
pálido troca o mel pelo sal.

Começou a amanhecer. Não sei ao certo como soubemos que tinha começado a amanhecer: era tão escuro ali dentro que noite ou dia lá fora não faria a menor diferença. Por algumas frestas, frinchas – não importa -, tivemos certeza de que começara, claramente, a amanhecer. E por condicionamento, talvez, porque sempre com o amanhecer chega a hora de ir embora, começamos a ir embora. Feito vampiros às avessas – necessitados de luz, não de sombra.

Tinha roxo e rosa no céu. Até as latas cheias de lixo na rua deserta pareciam vagamente douradas. Fez com que caminhássemos a pé, para olharmos o céu. E enquanto eu olhava o céu limpo da cidade suja, interpunha entre nós seu primeiro muro de palavras. Confusas, atormentadas, sobre tudo e sobre nada: palavras amontoadas umas sobre as outras, como se amontoam tijolos para separar alguma coisa de outra coisa. Eu, mal sabendo que esse – que parecia seu jeito mais fácil de ser – seria nas semanas seguintes seu jeito mais verdadeiro, às vezes único.

Quando o tempo passasse um pouco mais, nos surpreendendo ainda juntos em outra madrugada, minha cabeça repetiria tonta e lúcida “Éramos tão pálidos, e nos queríamos tanto”. Éramos muito pálidos naquela primeira manhã entre as latas de lixo da rua deserta, caminhando em direção ao dia de hoje – mas ainda não nos queríamos com este enorme susto no fundo dos olhos despreparados de querer sem dor.

Lembro que olhando para cima, descobri entre o roxo e o rosa das nuvens um anjo também pálido, magro e de barba por fazer, vestido de negro, com um leve sorriso nos lábios, vertendo uma gota de mel sobre nossas cabeças. Não prestei atenção nele. Me deixava levar, guiado apenas pelo jardim que entrevia pelas frestas dos tijolos, nos muros-palavras erguidos entre nós, com descuido e precisão. Viriam depois, mais duros que os de palavras, muros de silêncio tão espesso que nem mesmo os demorados exercícios de piano, as notas repetidas e os dedos distendidos, conseguiram derrubar.

Errei pela primeira vez quando me pediu a palavra amor, e eu neguei. Mentindo e blefando no jogo de não conceder poderes excessivos, quando o único jogo acertado seria não jogar: neguei e errei. Todo atento para não errar, errava cada vez mais. Mas durante as ausências, olhando então para cima e abrindo a boca, recebia em cheio na garganta as gotas de mel de jarro de lata que aquele anjo pálido trazia ao ombro. Embora me recusasse a ver que o anjo parecia cada vez mais sombrio. Incapaz de perceber que em seu leve sorriso, bem no canto da boca, começava a surgir uma marca de sarcasmo, feito um tique cruel.

Passaram-se muitos dias. A lua deu mais de uma volta completa no Zodíaco. Ultrapassou Sagitário e caminhou até Áries, completando seu triângulo de fogo e de paixão. Bati as mãos contra o muro, procurando brechas. Não havia mais. Espatifei as unhas, gritei por uma resposta qualquer. Nem uma veio de volta. Olhei para fora de mim e não consegui localizar ninguém no meio das vibrações da cidade suja. Olhei para dentro de mim e só havia sangue. Derramado, como nas cirandas.

Queria acordar, mas não era um sonho.

Então localizei outra vez aquele mesmo anjo parado entre as nuvens. Estava de branco, agora, mas nem nenhum sorriso nos lábios severos. Em suas mãos havia um jarro de ouro. De dentre dele, chovia um mar de sal sobre minha cabeça. Por quê? – eu perguntei. O anjo abriu a boca. E não sei se entendo o que me diz.

                 OESP, Caderno 2. Terça-feira, 1 de julho de 1986
                 E no livro Pequenas Epifanias

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Negro amor ao som de Bruce Springsteen


Paris – Acaso – você conhece – é só um dos nomes de Deus. Por essa espécie de acaso, conheci João. Eu jantava com amigos quando o garçom me chamou a atenção. Um negro pequeno, forte, cabeça pequena, olhos redondos pretos e vivos, sorriso enorme. E qualquer coisa luminosa em volta. Apesar do seu francês impecável, imaginei Cabo Verde, Cuba, Martinica. Puxei papo. João é brasileiro. De Minas. O mais simpático, rápido e sorridente garçom daquele restaurante de garçons meio emburrados. Por outro acaso desses, outra noite nos cruzamos num bar. Mortos de sede do Brasil, cantamos juntos Nana Caymmi, depois caímos nesse poço inevitável: histórias pessoais. Eu quase não tinha nada a contar ou, por deformação profissional, preferia ouvir. Entre cervejas, então, João contou.

Veio do Brasil há mais de dez anos, apaixonado por Christian, um francês também apaixonado por ele. Trabalharam, viajaram, se amaram, sempre juntos. Então Christian começou a ficar doente, cada vez mais doente. Fez o teste fatídico: sim, Aids – ou Sida, como dizem os franceses e nós brasileiros também deveríamos dizer, não fôssemos tão colonizados. Mas isso não importa agora.

O que importa é a história de João. Dura, real, presente. A morte, no pequeno apartamento alugado, Christian recusa-se a ser hospitalizado. O AZT, DDI e todas essas coisas afetaram sua mente, às vezes foge pelas ruas, seminu e muito magro. João avisou a mãe de Christian, que não o conhecia e vive em Toulouse. A mãe, judia de 74 anos que muito sofreu durante a guerra, veio a Paris sem saber do que se tratava. Sem saber de absolutamente nada. E esbarrou nas três pontas farpadas desta situação: 1º) O filho de 40 anos é homossexual; 2º) o filho está à morte com Aids; 3°) O filho vive com um negro brasileiro. Na cara certamente exausta dessa velha senhora, três preconceitos de uma só vez: a homossexualidade do filho único, a Aids e a raça de João – além de negro, brasileiro. E como se não bastasse, um assintoso teste negativo. Os três juntos num quarto e sala de Montparnasse. Christian delira no quarto. João trabalha em dois, três restaurantes, sem folga. A mãe quer levar o filho para morrer em Toulousse. Sem João, claro: o que não vão dizer os vizinhos? Christian não quer. João também não: “Quero que ele morra comigo. Quero ficar com ele até o fim, compreende?”.

Compreendo. E vejo a mãe sentada na sala olhando João com olhos acusadores quando ele chega de madrugada. João traz flores, frutas, leite, pães. Que a mãe não toca. Como se estivessem contaminados e João fosse o anjo negro portador da peste desse País assustador, a que os franceses se referem como lá-bas... João evita voltar para casa, fica pelos bares, vezenquando dorme no apartamentoo de Fifi, que vive no mesmo prédio e é o melhor amigo de Christian. O que fazer com uma história destas?

Parece peça de teatro, digo, parece filme. E quando digo “filme”, ao mesmo tempo em que João me pergunta o que fazer, eu tenho a ideia. João, convide a mãe de Christian para ir ao cinema, leve-a para ver Filadélfia, de Jonathan Demme. Só isso. Não precisa dizer nada. Compre pipocas ou coisa alguma. Fique quieto, duas horas no escuro, ao lado dela. João sorri. Sorri sempre mesmo quando os detalhes de sua história são pesados demais. Et porquoi pas? considera. Eu me pergunto se voltarei a vê-lo assim, por acaso. Por isso que as pessoas – tão pudicas de magia – costumam chamar de “acaso”. E não sei o que vem depois.

Mas esse luminoso à sua volta João, quero perguntar, será o que chamam de “amor”? Ele não me escutaria. Braços abertos e sorriso enorme, dança no meio da pista como um Deus negro, solitário e selvagem.

A luta continua.

OESP, Caderno 2, 15 de maio de 1994

P.S: Essa crônica foi escrita em Paris. Caio F. ainda não se sabia portador do vírus da Aids, o que ocorreria logo depois da volta dessa viagem. Primeira Carta Para Além do Muro, crônica onde ele conta ser portador do vírus, foi publicada em 21 de agosto desse ano.



segunda-feira, 20 de junho de 2016

Existe sempre alguma coisa ausente

Paris – Toda a vez que chego a Paris tenho um ritual particular. Depois de dormir algumas horas, dou uma espanada no rodenir terceiro-mundista e vou até Notre-Dame. Acendo vela, rezo, fico olhando a catedral imensa no coração do Ocidente. Sempre penso em Joana D’Arc, heroína dos meus remotos 12 anos; no caminho de Santiago de Compostella, do qual Notre-Dame é o ponto de partida – e em minha mãe, professora de história que, entre tantas coisas mais, me ensinou essa paixão pelo mundo e pelo tempo.

Sempre acontecem coisas quando vou a Notre-Dame. Certa vez, encontrei um conhecido de Porto Alegre que não via pelo menos há 20 anos. Outra, chegando de uma temporada penosa numa Londres congelada e aterrorizada por bombas do IRA, na época da guerra do Golfo, tropecei numa greve de fome de curdos no jardim em frente. Na mais bonita dessas vezes, eu estava tristíssimo. Há meses não havia sol, ninguém mandava notícias de lugar algum, o dinheiro estava no fim, pessoas que eu considerava amigas tinham sido cruéis e desonestas. Pior que tudo, rondava um sentimento de desorientação. Aquela liberdade e falta de laços tão totais que tornam-se horríveis, e você pode então ir tanto para Botucatu quanto para Java, Budapeste ou Maputo – nada interessa. Viajante sofre muito: é o preço que se paga por querer ver “como um danado”, feito Pessoa. Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio.

Foto: Márcia Bechara, "furtada" do facebook dela
Enrolado num capotão da II Guerra, naquela tarde em Notre-Dame rezei, acendi vela, pensei coisas do passado, da fantasia e memória, depois saí a caminhar. Parei numa vitrina cheia de obras do conde Saint-Germain, me perdi pelos bulevares de Île de la Cité. Então sentei num banco do Quai de Bourbon, de costas para o Sena, acendi um cigarro e olhei para a casaem frente, no outro lado da rua. Na fachada estragada pelo tempo lia-se numa placa: "Il y a toujours quelque chose d’absent qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) – frase de uma carta escrita por Camille Claudel a Rodin, em 1886. Daquela casa, dizia a placa, Camille saíra direto para o hospício, onde permaneceu até a morte. Perdida de amor, de talento e de loucura.

Fazia frio, garoava fino sobre o Sena, daquelas garoas tão finas que mal chegam a molhar um cigarro. Copiei a frase numa agenda. E seja lá o que possa significar “ficar bem” dentro desse desconforto inseparável da condição, naquele momento justo e breve – fiquei bem. Tomei um Calvador, entrei numa galeria para ver os desenhos de Egon Schiele enquanto a frase de Camille assentava aos poucos na cabeça. Que algo sempre nos falta – o que chamamos de Deus, o que chamamos de amor, saúde, dinheiro, esperança ou paz. Sentir sede, faz parte. E atormenta.

Como a vida é tecelã imprevisível, e ponto dado aqui vezenquando só vai ser arrematado lá na frente. Três anos depois fui parar em Saint-Nazaire, cidadezinha no estuário do Rio Loire, fronteira sul da Bretanha. Lá escrevi uma novela chamada Bem Longe de Marienbad, homenagem mais à canção de Barbara que ao filme de Resnais. Uma tarde saí a caminhar procurando na mente uma epígrafe para o texto. Por “acaso” fui dar na frente de um centro cultural chamado (oh!) Camille Claudel. Lembrei da agenda antiga, fui remexer papéis. E lá estava aquela frase que eu nem lembrava mais e era, sim, a epígrafe e síntese (quem sabe epitáfio, um dia) não só daquele texto, mas de todos os outros que escrevi até hoje. E do que não escrevi, mas vivi e vivo e viverei.

Pego o metrô, vou conferir. Continua lá a placa, na fachada da casa número 19 do Quai de Bourbon, no mesmo lugar. Quando um dia você vier a Paris, procure. E se não vier, para seu próprio bem guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo.


OESP, Caderno 2, 03 de abril de 1994. E no livro Pequenas Epifanias. 

terça-feira, 15 de março de 2016

Material mais dinâmico e explosivo que existe

"Além da sensação imediata de beleza, quem vê, atento ou distraído, também pode sentir uma espécie de descarga elétrica. Talvez porque essas formas, essas manchas, estejam impregnadas pelo material mais dinâmico e explosivo que existe: a própria vida."

Texto de Caio Fernando Abreu para apresentação da mostra do artista plástico Joaquim Cunha. Módulo - Arquitetura e Arte, setembro de 1985.