terça-feira, 27 de maio de 2014

Lucidez poética

No começo dos anos 80, Caio Fernando Abreu assinava resenhas de livros na revista Veja. Aqui, já foram postadas várias, de escritores como Gabriel Garcia Marquez, Patricia Highsmith, Virginia Woolf, Julio Cortázar, Lya Luft, Adélia Prado. Abaixo, Caio resenha Sobre Loucos e Sãos, do britânico Ronald Laing (1927 - 1989), "o criador da antipsiquiatria, alçado à condição quase de guru durante os anos 70", como ele descreve. Boa leitura!

Sobre Loucos e Sãos
“Cada coisa é, na realidade, uma alucinação, cada coisa é pó, cada coisa é uma flor maravilhosa no céu” – diz Ronald D. Laing logo nas primeiras páginas deste livro (Sobre Loucos e Sãos), provando que seu pensamento, longe da rigidez teórica, cada vez mais se aproxima do discurso filosófico e literário. Apontando Albert Camus, Sartre e Kafka como fundamentais na sua formação, ele compara seus métodos de abordagem psiquiátrica aos de um romancista, quando assume “uma perspectiva sobre uma multiplicidade de perspectivas”. Talvez por isso estes textos possam ser lidos como se fossem uma obra poética.

Aos 53 anos, o criador da antipsiquiatria, alçado à condição quase de guru durante os anos 70, nessa série de entrevistas concedidas ao psicólogo italiano Vicenzo Caretti, discorre com o mesmo brilhantismo sobre temas como a filosofia zen, as viagens lisérgicas, os destinos da família, a condição da mulher, a esquizofrenia ou o amor. Seja qual for o assunto, sua preocupação básica é sempre com os seres humanos, pois o “essencial”, afirma, “é o que acontece entre as pessoas”.

Insurgindo-se contra a psiquiatria tradicional, punitiva e repressora, ele propõe novo caminho, onde exista uma emoção mais forte entre o analista e o analisado. Ao lado das mulheres, dos jovens, dos ecólogos, dos “loucos”, luta à sua maneira por uma revolução no interior dos indivíduos, “em direção a uma situação em que cada um se comporte melhor em relação aos outros”.


Culto, mas sem erudições inúteis, remete-se constantemente à filosofia oriental, à mitologia grega e à literatura contemporânea para ilustrar suas teorias. Lúcido sem ser pessimista, avisa aos que o consideram mais um profeta do apocalipse, cético e amargo: “Espero na segunda, na quinta e no domingo, e me desespero na terça e no sábado. Algumas vezes, tenho fé, outras não. Mas certamente não perdi nem a fé nem a esperança”. Como todos aqueles que, apesar das muitas provas em contrário, ainda acreditam na dignidade da condição humana”

                                                      Veja, 27 de maio, 1981