terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Felizes para sempre


Uma mulher está à beira do inferno. A seu lado, um homem escreve uma carta de amor Andar sozinha, sem apoio transformou-se numa prova difícil demais. Há dois meses você anda cada vez com mais dificuldade, você se agarra aos móveis, a mim. Os efeitos do álcool se tornam visíveis, terríveis.

Essas frases acima – e as demais, em negrito, intercalando este texto – pertencem a M.D., livro de Yann Andréa que a editora Marco Zero acaba de publicar. Quem ou quê significa essa sigla, esse M, esse D? Quem é esse Yann Andréa? O livro não dá pistas. Uma capa inteiramente branca, com aquelas iniciais, discretas em azul-claro. Nenhuma foto, nenhuma informação na contracapa. Um pequeno mistério: M.D.

Nas lágrimas, Trouville, o verão, a primeira garrafa de vinho, comprada por sua ordem, a obediência a tudo, até as lágrimas também, e eu diante de você, olhos, fechados, suplico que você me ame.

M.D., a orelha ou um folhear rápido no livro revela, são as iniciais da escritora e cineasta francesa Marguerite Duras. Yann Andréa, o nome de seu companheiro, também cineasta, que de agosto a novembro de 1982 registrou num caderninho, em forma de diário, o processo de desintoxicação alcóolica de sua amiga? Amada? Cúmplice? Depois de ler o livro (curtinho, 105 páginas), fica difícil encontrar uma palavra para definir a relação de Yann com Marguerite. Enfermeiro? amante? biógrafo? Todas essas tentativas, e mais algumas. O que Yann sente por Marguerite é imenso. Respeito, fascinação, carinho (o carinho que se tem por algo que é frágil como nós, não por uma coisa boba), piedade (a piedade que se tem pelo que é humano e carente como nós, não por alguém incapaz) e, quem sabe?, Isso que chamam de amor? Nunca em minha vida li uma carta de amor tão linda quanto a que Yann Andréa escreveu para Marguerite Duras.

Ponho a colcha branca sobre seus joelhos, recubro as pernas, não deixo nenhum espaço exposto ao frescor do ar, abraço você, guardo você, você não sabe, você dorme.

Internada em Nevilly, Hospital Americano de Paris, por vontade própria, Marguerite Duras – aquela Duras, que inicia O Amante, um dos livros mais belos deste século, descrevendo a devastação do álcool e do tempo no próprio rosto – tenta emergir de um inferno de álcool e ansiolíticos. Dienpax, Mogadon, Valium, Aldactone. Ela quer terminar seu livro, A Dança da Morte. Deitada na cama do hospital, num raro momento de lucidez, entre visões e tremores, Marguerite diz: “A única coisa que importa é a loucura, não ter medo de se perder de si mesmo”. Mas ela mesma não quer se perder de si. E, todos os dias, Yann está a seu lado. Até a noite. Depois, ele volta para o apartamento onde ela não está mais.

O carro avança, as lágrimas vêm. Não quero chorar. O motorista se cala, põe um cassete: Billie Holiday canta My Man.

Ele esquece todo o resto. Ele está voltado apenas para ela, que, numa cama de hospital, luta contra si mesma. Ele não se importa de não ter mais uma vida, desde que possa ficar ao lado dela. Por algumas horas, todo dia. Ela o acusa de coisas que ele não fez, ela fala coisas duras, Ele faz que não ouve. Ele a ajuda a lavar-se, ele a tranquiliza, Ele observa cada movimento dela em direção à luz ou à treva. Então se alegra, ou se entristece. Porque ele também tem problemas.

Estou diante do telefone sem poder falar. E depois, finalmente, as lágrimas. Esta vontade de álcool não passa.

Mas ela acaba por vencer. Os escritores são mestres em criar seus próprios infernos, só para descobrir formas de se ver livres deles. Em todas as esquinas desse labiirinto infernal, Yann permanece ao lado de Marguerite, mão na mão. Continuam juntos? me pergunto na noite tardia de sábado, ouvindo Thelonious Monk. De alguma forma, certamente sim, me respondo. Porque aprendi que esses amores capazes de superar o primeiro impulso que determina o próprio amor – a atração física – ah, esses amores não terminam nunca. (E nós aqui, vivendo essa coisa tão assustada e média...)

Não ouço nada, você deve estar no seu quarto, à sua mesa, você deve estar não olhando, através da cortina branca, como de hábito.

Yann e Marguerite foram felizes para sempre, eu invento. Preciso.


                            OESP – Caderno 2, Quarta-feira, 30 de setembro de 1987

Nota: Marguerite apaixonou-se por Yann nos anos 80. Ele era 38 anos mais novos. Viveram juntos até a morte ela, em 1996.

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