domingo, 16 de fevereiro de 2014

O Homem e o Futuro

No fim dos anos 70, Caio Fernando Abreu era redator da POP, “a primeira revista para jovens do Brasil” que a Abril lançara em novembro de 1972. É bem nessa época que começa Para Sempre Teu, Caio F., o livro que Paula Dip escreveu sobre ele. “Caio tinha muitos anos de estrada: integrou a primeira equipe de jornalistas da revista Veja, tinha vários livros publicados e premiados, havia morado na Europa. Ainda não assinava Caio F. e escrevia os contos de Morangos Mofados”, escreve Paula. “cabelos ralos, quase pretos, longos e escorridos, olhos indianos gigantescos, úmidos e de pupilas boiando e que olhavam com tristeza os telhados trágicos da rua do Curtume, na Lapa de baixo (nota: o endereço da redação)”, descreve no livro Carlos Alberto Fernandes, que era diretor da Pop.

Era a fase final da revista e Caio publicou ali algumas matérias com temas que o interessavam: ecologia, sonhos, previsões. Abaixo, Caio F. se lança ao mundo do futuro, em texto publicado há 35 anos, em setembro de 1978, o mês em que ele completou 30 anos.

                             
                           
                     As Fantásticas previsões estão se tornando realidade

                                Desde Flash Gordon até Guerra nas Estrelas
                                os autores de ficção científica tentam desvendar 
                                o futuro da humanidade. Você vai ver agora como 
                                alguns deles até já anteciparam a realidade.

Você certamente já ficou olhando para as estrelas, pensando na imensidão do céu e na insignificância do ser humano, perdido num planeta pequenino. Talvez tenham lhe ocorrido perguntas como “quem somos?”, “de onde viemos?”, “para onde vamos?” E é provável que tenha conseguido, pelo menos em parte, responder às duas primeiras. Neste “para onde vamos?” é que a ciência vacila e a imaginação se solta: para um homem das cavernas, não seria incompreensível um simples telefone, ou uma televisão? Será que dentro de um século os homens de 1978 não parecerão tão primitivos como nossos antepassados das cavernas? Em assunto como esse, a mente dos poetas parece ir mais longe que a dos cientistas: a razão pura mistura-se com fantasia. E cada vez mais a ficção científica antecipa a realidade do futuro.

Foi assim que o escritor Julio Verne em Da Terra à Lua, previu quase exatamente o voo da Apolo 8, em 1969, com coincidências espantosas. As primeiras edições do livro, de quase cem anos atrás, traziam como subtítulo “Trajeto Direto em 97 Horas”. Os astronautas americanos foram à Lua em 69 horas. Julio Verne fala também da necessidade de o foguete alcançar a velocidade de 11.000 metros por segundo: exatamente a velocidade da Apolo 8 para sair da órbita da Terra. Coincidências ou não, elas não param por aí. Verne imaginou também que três astronautas partiam de uma base em Tampa, na Flórida, a pouquíssima distância do verdadeiro Caba Canaveral de hoje. Havia algumas diferenças: no livro, o foguete era colocado em órbita por um gigantesco canhão, e os astronautas ficavam girando eternamente na órbita lunar. Os leitores ficaram furiosos com esse final, e Julio Verne teve que escrever uma continuação, Em Torno da Lua. E as coincidências prosseguem: a descrição das crateras é praticamente a mesma feita pelos astronautas reais, e o lugar que ele assinalou no oceano Pacífico para a descida da cápsula ficava a pouca distância do local onde os americanos realmente desceram.

Alex Raymond, o criador de Flash Gordon, foi outro grande profeta do futuro. Em 1934, suas histórias em quadrinhos já previam os cintos e sapatos antigravitacionais, os capacetes espaciais e – essa é incrível! – até a minissaia, que Mary Quant lançaria trinta anos depois. E além da moda, ele também desenhou com perfeição o trem-bala, que hoje faz o percurso Oska – Tóquio; os aparelhos de televisão; o lançamento vertical de foguetes (as torres que hoje existem na Rússia e nos Estados Unidos são idênticas aos seus desenhos). Até o raio laser, que ainda está sendo aperfeiçoado, já era arma comum nas aventuras de Flash Gordon. E tanta coisa mais que um dos boletins oficiais da NASA informou que a saída do astronauta da nave espacial foi solucionada porque os cientistas eram velhos leitores e colecionadores das histórias em quadrinhos de Flash Gordon.


Quando Alex Raymond morreu, em 1956, num acidente, talvez tenha carregado consigo a resposta a uma pergunta que poucas pessoas saberiam responder: como será o futuro da humanidade?


Hoje, é relativamente fácil para um cientista garantir que em 1980 o homem pisará em outros planetas; que em 1990 será possível a inteligência artificial, ou que em 2020 a meteorologia e a hereditariedade poderão ser controladas. A diferença entre essas previsões e as de Raymond é que, há mais de quarenta anos, não existia base científica para isso. A investigação sobre o futuro sempre foi um dos temas preferidos do cinema, desde que, em 1902, o francês Georges Méliès filmou um ingênuo e mudo Viagem à Lua, cheio de monstros. Os monstros dominaram os filmes de ficção científica até a explosão da bomba atômica em Hiroxima, em 1945. As aranhas gigantescas e os homenzinhos de mil braços deram lugar a outro tema: o perigo nuclear. Os filmes da época pareciam um trecho do Mundo Libertado, de H. G. Wells, onde aparece “uma Terra em que nada mais resta senão um luar escarlate e púrpúreo e um ruído contínuo, avassalador”. Depois de uma pausa, nos anos 60 (quando foram feitas duas obras-primas do gênero: Alphaville, de Godard, sobre uma cidade robotizada, e Farenheit 451, de Truffaut, sobre proibição e queima de livros), recentemente os filmes de FC voltaram a todo vapor. E o incrível sucesso de Contatos Imediatos prova que a imaginação das pessoas anda solta no cosmo. Mas as fantasias não são sempre otimistas. Para um divertido Guerra nas Estrelas ou um poético Contatos Imediatos, existem terríveis previsões – como as de Fuga no Século 23, Ano 2000: Corrida da Morte, Travessia Para o Futuro, Onde Ninguém Tem Alma, No Mundo de 2020, Rollerball ou O Planeta dos Macacos.

Segundo os críticos, há três características comuns nesse tipo de filme. Primeiro: o país do futuro é um país acabado – a guerra acabou, a poluição acabou, a poluição acabou, a luta social acabou. A sociedade atingiu o bem-estar absoluto, tudo é dividido igualmente entre todos. Segundo: a distância entre os homens e os centros de programação e controle é cada vez maior. O computador é o centro da sociedade, e em voltam dele pessoas especiais cuidam da fiscalização e segurança. Terceiro: as pessoas comuns são treinadas como máquinas, agem sob o controle de drogas de um cérebro eletrônico ou dos meios de comunicação. Todos esses filmes partiram do maior clássico do gênero: Metrópole, do alemão Fritz Lang, de 1927. A cidade futura imaginada por ele se divide em dois níveis. Na superfície há jardins, torres de aço e vidro, viadutos, carros e naves para uso exclusivo de “pessoas especiais”. No subterrâneo, em cavernas escuras e cheias de máquinas, vivem os operários: seres mecanizados, vigiados por máquinas, robôs e câmeras de TV.

Em muitos filmes, a natureza já não mais existe, o mundo está superlotado, as cidades protegidas por redomas e o ar insuportavelmente poluído. Em No Mundo de 2020, um dos mais assustadores, máquinas enormes apanham pessoas para triturá-las e transformá-las em tabletes verdes que alimentam o resto da população. E os rios, as flores, os animais, as árvores – tudo morreu. Imaginação? Nem tanto, se pensarmos nos problemas reais deste nosso planeta em pleno 1978.

Diz Steven Spielberg, diretor de Contatos Imediatos do Terceiro Grau: “O que vale agora é a impressão do que poderá ser, e não mais do que poderia”. Por isso, informações do filme basearam-se em documentos verdadeiros da NASA, sobre discos voadores. Não são “fantasias”, mas possibilidades bem próximas do real.

Quando se volta para o futuro, a literatura não é muito diferente do cinema. Pelo menos é o que se pode julgar a partir de dois grandes romances, clássicos do gênero: 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (outro incrível profeta). No primeiro, um mundo onde todos são observados por enormes tele-telas e obrigados a trabalhar para “refazer o passado”, corrigindo e modificando sem parar notícias que possam abalar a impressão do povo de que está “tudo bem”. No Admirável Mundo Novo, Huxley previu um fato que agora começa a tornar-se possível: os bebês criados artificialmente  em laboratórios. Numa “sociedade perfeita”, as pessoas são fabricadas em categorias: desde o Alfa-Mais (a raça superior), até os Ipsilones, verdadeiros escravos sem nenhuma consciência. Mas todos são calmos e felizes: uma droga distribuída nos fins de semana – o soma – mantém o povo contente. Ou iludido.

Mas existem outros livros interessantes, divertidos ou assustadores. Desde Kurt Vonnegut Jr. – o autor preferido dos universitários norte-americanos -, até o poético Ray Bradbury, que já teve filmadas algumas de suas histórias (como Farenheit 451 e Uma Sombra Passou Por Aqui). E outros, como Isaac Asimov, Clifford Simack, Anthony Burgess (o autor de Laranja Mecânica) ou Walter M. Miller, do bonito Um Cântico Para Leibowitz. Em todos eles, a preocupação com aquela terceira pergunta: para onde vamos, afinal?

As respostas nem sempre são positivas: as centrais nucleares podem permitir até mesmo o controle do clima, mas também podem causar acidentes fatais a milhões de pessoas. As viagens espaciais trazem o problema do lixo cósmico. O desenvolvimento industrial provoca a poluição dos rios e do ar. O progresso parece ter duas faces opostas: uma cheia de promessas maravilhosas, como o conhecimento de outros planetas e o aperfeiçoamento da raça humana. Outra, terrível, que pode provocar a destruição de todo o planeta e de toda a humanidade.

Há mais de cem anos, Julio Verne parecia saber disso quando escreveu no seu primeiro romance: “De tanto inventar máquinas, os homens acabarão sendo devorados por elas! Sempre imaginei que o último dia seria aquele em que alguma imensa caldeira, aquecida a três bilhões de atmosferas, fará explodir o nosso pobre planeta”.

Seria bom que ele estivesse enganado desta vez. Como seria bom, também, que no ano 2000 pudessemos ainda repetir as mesmas palavras que Yuri Gagarin disse em 1961, ao ver nosso planeta do espaço: “A terra é azul”. Seria bem mais fácil manter vivo o azul se cada um tivesse consciência que o hoje começou a ser construído ontem. Assim como o amanhã já está sendo construído neste exato momento do dia de hoje.

                                               Revista Pop, setembro de 1978


terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Felizes para sempre


Uma mulher está à beira do inferno. A seu lado, um homem escreve uma carta de amor Andar sozinha, sem apoio transformou-se numa prova difícil demais. Há dois meses você anda cada vez com mais dificuldade, você se agarra aos móveis, a mim. Os efeitos do álcool se tornam visíveis, terríveis.

Essas frases acima – e as demais, em negrito, intercalando este texto – pertencem a M.D., livro de Yann Andréa que a editora Marco Zero acaba de publicar. Quem ou quê significa essa sigla, esse M, esse D? Quem é esse Yann Andréa? O livro não dá pistas. Uma capa inteiramente branca, com aquelas iniciais, discretas em azul-claro. Nenhuma foto, nenhuma informação na contracapa. Um pequeno mistério: M.D.

Nas lágrimas, Trouville, o verão, a primeira garrafa de vinho, comprada por sua ordem, a obediência a tudo, até as lágrimas também, e eu diante de você, olhos, fechados, suplico que você me ame.

M.D., a orelha ou um folhear rápido no livro revela, são as iniciais da escritora e cineasta francesa Marguerite Duras. Yann Andréa, o nome de seu companheiro, também cineasta, que de agosto a novembro de 1982 registrou num caderninho, em forma de diário, o processo de desintoxicação alcóolica de sua amiga? Amada? Cúmplice? Depois de ler o livro (curtinho, 105 páginas), fica difícil encontrar uma palavra para definir a relação de Yann com Marguerite. Enfermeiro? amante? biógrafo? Todas essas tentativas, e mais algumas. O que Yann sente por Marguerite é imenso. Respeito, fascinação, carinho (o carinho que se tem por algo que é frágil como nós, não por uma coisa boba), piedade (a piedade que se tem pelo que é humano e carente como nós, não por alguém incapaz) e, quem sabe?, Isso que chamam de amor? Nunca em minha vida li uma carta de amor tão linda quanto a que Yann Andréa escreveu para Marguerite Duras.

Ponho a colcha branca sobre seus joelhos, recubro as pernas, não deixo nenhum espaço exposto ao frescor do ar, abraço você, guardo você, você não sabe, você dorme.

Internada em Nevilly, Hospital Americano de Paris, por vontade própria, Marguerite Duras – aquela Duras, que inicia O Amante, um dos livros mais belos deste século, descrevendo a devastação do álcool e do tempo no próprio rosto – tenta emergir de um inferno de álcool e ansiolíticos. Dienpax, Mogadon, Valium, Aldactone. Ela quer terminar seu livro, A Dança da Morte. Deitada na cama do hospital, num raro momento de lucidez, entre visões e tremores, Marguerite diz: “A única coisa que importa é a loucura, não ter medo de se perder de si mesmo”. Mas ela mesma não quer se perder de si. E, todos os dias, Yann está a seu lado. Até a noite. Depois, ele volta para o apartamento onde ela não está mais.

O carro avança, as lágrimas vêm. Não quero chorar. O motorista se cala, põe um cassete: Billie Holiday canta My Man.

Ele esquece todo o resto. Ele está voltado apenas para ela, que, numa cama de hospital, luta contra si mesma. Ele não se importa de não ter mais uma vida, desde que possa ficar ao lado dela. Por algumas horas, todo dia. Ela o acusa de coisas que ele não fez, ela fala coisas duras, Ele faz que não ouve. Ele a ajuda a lavar-se, ele a tranquiliza, Ele observa cada movimento dela em direção à luz ou à treva. Então se alegra, ou se entristece. Porque ele também tem problemas.

Estou diante do telefone sem poder falar. E depois, finalmente, as lágrimas. Esta vontade de álcool não passa.

Mas ela acaba por vencer. Os escritores são mestres em criar seus próprios infernos, só para descobrir formas de se ver livres deles. Em todas as esquinas desse labiirinto infernal, Yann permanece ao lado de Marguerite, mão na mão. Continuam juntos? me pergunto na noite tardia de sábado, ouvindo Thelonious Monk. De alguma forma, certamente sim, me respondo. Porque aprendi que esses amores capazes de superar o primeiro impulso que determina o próprio amor – a atração física – ah, esses amores não terminam nunca. (E nós aqui, vivendo essa coisa tão assustada e média...)

Não ouço nada, você deve estar no seu quarto, à sua mesa, você deve estar não olhando, através da cortina branca, como de hábito.

Yann e Marguerite foram felizes para sempre, eu invento. Preciso.


                            OESP – Caderno 2, Quarta-feira, 30 de setembro de 1987

Nota: Marguerite apaixonou-se por Yann nos anos 80. Ele era 38 anos mais novos. Viveram juntos até a morte ela, em 1996.