domingo, 9 de novembro de 2014

Me leva pro céu, Luni!

Depois de 12 anos, o grupo Luni fez show no sábado passado no Auditório Ibirapuera, em São Paulo. Aqui, de volta a 1987, quando a banda tinha um ano de carreira e Caio F. decreta, definitivo,é “a melhor banda da cidade".


                                         Oito pessoas lindas, com um
                                         som irresistível: é o Luni,
                                         a melhor banda da cidade

Assumi, definitivo. Venci minha monolítica timidez: sou tiete do grupo Luni. Aquele que está em todos os shows, na primeira fila, grita bis, grita bravô! (com acento francês, em homenagem aos dois saxofonistas), dança, sua, aplaude em pé, depois vai aos camarins dar beijinhos arfantes de prazer. Cada nova vez, confirmo: o Luni é o melhor grupo da cidade, do estado, do País. Calma, Caio F., vamos por partes.

No último sábado, a lua cheia, e naquele lugar cada vez melhor que é o Espaço Mambembe, o show do Luni deixou claro que todo este deslumbramento é mais que justificado. Por exemplo: o Luni, graças a Deus, não é (mais) um grupo de rock. A gatíssima expressão pós-tudo nunca se encaixou tão bem quanto aqui. O Luni incorpora blues, ritmos afros, caribenhos, new-age, samba e tudo mais que você lembrar, passa por dentro e por cima das influências para desembocar num trabalho que, por lembrar tudo, não lembra nada parecido. São originalíssimos e cheios de clichês sarcásticos, bem humorados.

Não, o Luni não gravou nem tem gravadora. Sem citar nomes, um dos integrantes contou que um famoso produtor disse que o som deles era “eclético demais”. Pode? Outro argumentou que tinha medo que o Luni virasse uma Cult-band. Sem sacar que o Luni já é uma Cult-band – ou seja, uma banda para os adoradores dispostos a perseguí-los pelo circuito alternativo da cidade (Off, Satã, Mambembe, o bem-vindo Bodega Bay). Eles não aparecem na Globo, não estão programados para Canecão nem à venda na Hi-Fi. Porque este país é burro, mas isso é outra história.

O Luni não tem estrelas, é uma banda comunitária, aquariana. Eles são oito: os franceses Giles Eduard e Lloyd Bonne Maison (que, acreditem, nasceu em Java, viveu na Etiópia e estudou em Berkeley, o artista plástico Theo Werneck (capaz de receber James Brown ou Louis Armstrong, em vocalizes arrepiantes de soul e negritude), a guitarrista Lelena, o trio-fundador Fernando, André e Natália, a bela (que faz parte do grupo de bonecos XPTO, também o melhor da cidade) -, mais uma special guest star, a mulher maravilha Marisa Orth (quem a viu atuando em Criança Enterrada, de Sam Shepard, ou Prepare Seus Pés Para o Verão, de Marta Góes, sabe do que ela é capaz. Se Marisona, a deusa, enlouquece a plateia cantando A Melhor (“eu sou a melhor/ eu sempre fui a melhor”) ou gemendo versos de Boris Vian na pele de uma francesa sadomasô (“me machuca, Johnny, me leva pro céu/ eu gosto de amor que dói”), de repente pode dividir um backing com Natália e tocar modestamente sua maracá, enquanto chega a voz de Fernando ou Theo ou qualquer outro brilhar. E como brilham!

O Luni é elegante sem ser afetado, culto sem ser pedante, engraçado sem ser bobo, bonito sem ser vaidoso, ensaiado à perfeição sem ser mecânico, chique sem ser esnobe, brega sem ser cafona. E principalmente música, naturalmente música. Porque é um som que você pode dançar, o ritmo é irresistível, cantar (seja em iorubá, espanhol, português, inglês, francês) (Pour Quoi, Monsieur? é uma miniobra prima) e também ver: eles são teatrais, performáticos. Marinheiros, prostitutas, mariachis, astronautas, brazilianistas, robôs, crianças: fazem número. Passam alegria (que raro), saúde (oba!), vontade de viver (wow!). Quer maior luxo?

Por tudo isso repito: o Luni é o melhor grupo da cidade, do estado, do País. Dou o toque às WEA, Polyrgrams, CBSs, RCAs da vida: ô, gravadoras, cêis tão de bobeira, gente! Por falar nisso, prestem atenção também em Os Mulheres Negras e no Nouvelle Cuisine: depois disso, quem disser que a música brasileira tá em crise, eu grito. Como vou gritar neste fim de semana, no Circo Voador, quando o Luni, as Harpias, Marcelo Mansfield, o Mazzipan, e outras gentes vão mostrar aos cariocas o que é que São Paulo tem. Muito além de Jânio ou Quércia, tenho dito.

                                             OESP, Caderno 2, 15 julho 1987

Aqui, Johnny, que Caio F. cita na crônica. Vídeo de Ruth Slinger, extraído de especial do Luni, realizado para tv manchete, no Rio de Janeiro


terça-feira, 14 de outubro de 2014

Oração à paranoia


                                                          Oração à paranoia

Glória a ti, Paranoia nossa de cada dia!

Teu nome é sonoro e poderoso como o de uma deusa. Deusa do medo irracional, persecutório, megalômano, incapaz de decifrar o limite entre a suspeita gelada e esse muro áspero que chamamos de “real”. Deusa paranóia, senhora dos esquizofrênicos, rainha soberana destes tempos de névoa e de nojo, destes tempos de trevas e de vírus, destes tempos de fuga e suicídios. Deusa necessária para localizar a lâmina do punhal escondido no bolso do que se diz amigo, só tu és capaz de desmascarar a dança assassina por trás de cada gesto de carinho falso. Deusa solitária acuada feito bicho no covil mais imundo do teu cérebro, deusa doentia, fugitiva da luz, temerosa do bem, deusa vampira de todos os terrores, geradora de enganos salvadores.

Oh rainha suprema!

Ama nossa solidão e nosso medo com dentes de metal para que possamos lutar sem esperança contra a matilha faminta de lobos que nos cercam ontem, hoje, amanhã e sempre.

Ave, Paranoia!

Nós, que ainda não morremos, te saudamos. E arrojados a teus pés, em coro uníssono suplicamos: Ave, Ave Paranoia nossa de cada dia! Não nos abandones, até que a morte nos destrua, amém.

                                                       Nicolau nº 27, 1989

 
Fragmento do filme Romance, de Sérgio Bianchi. Texto dito pelo personagem Antonio César, interpretado por Rodrigo Santiago (foto ao lado)  e não aproveitado na montagem final.

Caio F. foi um dos roteiristas de Romance, lançando nos cinemas em 1988 e disponível em DVD

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Abolerados blues ou Para Sempre Teu

A crônica abaixo veio do facebook da Paula Dip e foi publicada na revista Lira Paulistana. Eis o post da Paula: "Procurei muito, e encontrei ontem, perdido entre meus arquivos, esse texto de Caio, "Abolerados blues, ou Para sempre teu", publicado nos anos 80 na extinta revista Lira Paulistana. Esse texto me inspirou quando dei titulo ao meu livro, e nele Caio fala de uma de suas grandes paixões: a cidade de São Paulo, que ele amou e odiou com igual fervor". E Para Sempre Teu Caio F., o livro de Paula Dip, lançado em 2009, breve estará com uma nova edição (a quinta) nas livrarias. Abaixo, Abolerados Blues ou Para Sempre Teu:



Meu dia em Sampa começa sempre na Avenida Rebouças, saindo da vila escondida onde habito para batalhar ônibus ou táxi (quando há grana, claro). Não é muito agradável. Tem barulho demais, monóxido de carbono demais, tem um astral de tensão que me faz chegar no trabalho como se tivesse um mármore na nuca. Atrasado, correndo, pelas manhãs, maldigo muito a vida e a cidade, assobiando “deu pra ti, baixo-astral/ vou pra Porto Alegre, tchau/ quando ando assim meio down/ vou pra Porto e bah trilegal”. Mas não vou pra Porto, a não ser para pegar um colo rápido, vezenquandemente. É só um inofensivo consolo escapista. Nem deu pra Sampa, ainda. Vou ficando por aqui, que Oxalá e Tupã me alumiem.



A noite costuma aliviar, principalmente quando chove e tem aqueles luminosos todos refletidos nas poças d’água da Consolação. Ou uns crepúsculos, uns laranjas, uns vermelhos intensos pras bandas do Ibirapuera. Uma chuva fininha, daquelas que dá vontade de ficar o dia todo em casa tomando chás, ouvindo Erik Satie e lendo Proust, bem tia. Nessas horas, Sampa revela seus venenos escondidos, suas seduções tão secretas e tão sutis que você mal percebe até que ponto está envolvido. Aí você grita chega! e sai correndo pro Rio de Janeiro. Que nada. Um dia, dois, três no máximo, aquela exuberância toda começa a gastar e o de dentro da gente vai ficando meio sem paradeiro no meio da dispersão, dos baixos leblons a sóis ipanemas da vida. Haja Ponte Aérea.

Deve ser lugar-comum, mas Sampa é definitivamente um caso de amor mal resolvido, sabe como? Você já amaldiçoou mil vezes a vez em que a conheceu, você já deu na cara dela, ela já deu na tua cara (vezenquando ficam feias marcas, roxuras, inchaços, cicatrizes), você já bateu forte a porta de casa jurando vingança e nunca mais voltar. Perfídia, injúria: abolerados blues. Mas voltou sempre. E teve também aquelas noites com vinho branco, luz de velas, depois lençóis de cetim, suspiros, ah aquela tarde no Ibirapuera quando, olhando as carpas coloridas, de repente tudo ficou mágico! E os planos, tantos planos em comum, tantos encontros inesperados, tantas mãos se tocando mornas, fazendo tudo parecer um grande e único corpo, com um só coração batendo sístole-diástole, todo sangue e paixão. Como sobreviver à ausência disso?

Depois, tem pessoas. Só aqui existiria, por exemplo, Augusto de Campos. Ou Rita Lee. Ou Lygia Fagundes Telles. Ou Telmo Martino. Ou Cida Moreira. Ou J.C. Violla. Ou Bruna Lombardi. Ou José Márcio Penido. Ou se começo a enumerar, não paro. Então mesmo naqueles sábados à noite, quando a última possibilidade é discar 130 para ouvir uma voz humana, você sabe que em algum ponto da babylon city deve haver uma pessoa bonita, senão fazendo algo bonito pelo menos sendo, bonitamente, ela mesma. Ajuda? Pode ser. Ainda que ultimamente a cidade ande mais pro escândalo da Ro-Ro do que pra saúde de Lee Jones. Ou sou eu quem anda assim? Porque também não sei se sei mais separar o que é de dentro e o que é de fora de mim, o que me faz pensar – com ou sem zen-budismos, pouco importa – se a cidade não seria eu o tempo todo, ou vice e versa, tanto faz. Também tenho essas zonas lestes, esses jardins, moocas e morumbis esquizoidemente divididos sobre a pele asfaltada.

E é então que a paisagem vista através da janela se transforma subitamente num espelho. No primeiro olhar, você rejeita, vidro vagabundo, espelho deformante como aqueles de parque de diversões. Depois, aos pouquinhos, você começa a encarar e vai aceitando. Não é simpático esse arranha-céu de vidro ali no olho esquerdo? E o que me diz da praça larga sobre a boca? Da quaresmeira toda florida entre os cabelos? Aquele tietê na testa cheira um pouco mal, é verdade, e os shppingcenters no nariz incomodam bastante. Mas tanto gás neon cintila em tuas pupulas desbotadas, baby, que você de repente fica tonto e gira e gira todo vivo ao som de mil buzinas, sem saber nunca se de desespero ou de alegria.

Diz que até o ano 2000 abre uma fenda embaixo de Sampa e engole tudo. Deus, preciso dar um jeito de acabar com este caso! Devolva logo minhas cartas e minhas fotografias, diaba. Apesar de tudo, para sempre teu

                                                Caio Fernando de Abreu

                           Revista Lira Paulistana, começo dos anos 1980

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Prefácio à Esta Valsa é Minha

Está de volta às livrarias Esta Valsa é Minha, o romance autobiográfico de Zelda Fitzgerald. A caprichada edição da Companhia das Letras fez a fineza de incluir o prefácio que Caio F. escreveu em 1986, quando o livro saiu por aqui. Está na capa, bem destacado: “prefácio original de caio fernando abreu”. Ele iria adorar. A partir da próxima linha, tudo é do Caio. 


Sempre imagino assim: um dia, um daqueles dias longos, chapados e doloridos da clínica psiquiátrica, Zelda sentou e escreveu, como se fosse a voz de outra pessoa, uma frase assim: “Essas garotas pensam que podem fazer qualquer coisa e ficar impunes”. Porque provavelmente era isso que diziam todos em volta dela. Ou só pensavam, nem é preciso dizer. Estava escrito nos olhos e no comportamento dos médicos, das enfermeiras, dos poucos amigos que a visitavam, e quem sabe até no rosto do marido Francis Scott, obrigado agora a escrever e vender ficção como se fossem salsichas para poder sustentá-la na clínica. Linda, jovem, talentosa, com um marido e uma filha lindos – e louca. Pode?

Podia. Tanto que ela estava ali. Depois de escrita aquela frase – imagino sempre –, o resto veio naturalmente: em apenas seis semanas, ela terminou Esta Valsa é Minha. Escrito, como se pode perceber por seu volume e pelo pouquissimo tempo, de um jato só. Zelda escrevia para se justificar, para se compreender, para se salvar. Para orientar a si própria dentro daquele poço onde tinha caído e que, até hoje, por falta de outra palavra mais adequada, chamamos de “loucura”. Nesse sentido, conheço apenas um outro livro assimm autoterapêutico: The Bell Jar (A Redoma de Vidro), o único romance escrito pela poeta Sylvia Plath, pouco antes de suicidar-se, aos trinta e um anos. Ela não conseguiu salvar-se através da literatura. Zelda também não: a loucura voltaria em ondas, com pequenos intervalos, até o incêndio no hospital psiquiátrico que a matou acidentalmente, em 1947, sete anos depois da morte de Scott.

A autobiografia é nítida em Esta Valsa é Minha. De certa forma, parece a versão pessoal de Zelda a tudo que Scott contaria em Suave é a Noite, onde ela própria aparece com o nome de Nicole. Aqui, ela se chama Alabama, uma garota ousada do sul dos Estados Unidos que, em plenos anos 20, emerge de sua vida provinciana para casar-se com o artista David Knight: “David Knight e srta. Alabama Ninguém” – ele grava com a ponta de uma faca na madeira da porta, pouco depois de se conhecerem. E a vida, a seguir, por trás dos prazeres, viagens e bebedeiras monumentais, parece ter sido sempre a luta de Alabama para deixar de ser a “srta. Ninguém”. Ou a luta de Zelda para deixar de ser a sombra, embora fascinante, do escritor mais mimado e talentoso de seu tempo.

Capa da 1ª edição
Alabama/Zelda tem uma filha (Bonnie, no romance; Scottie, na vida real), um caso com um aviador francês (Jacques, no romance; Edouard Josanne, na vida real). À procura da própria face, apaixona-se pela dança: faz aulas alucinadamente, como se fosse possível tornar-se uma grande bailarina. Zelda desistiu: Alabama, não. Persegue seu sonho até a Itália, e é aqui que a loucura aparece sobre a forma de metáfora: Alabama quase precisa amputar um pé, de tanto dançar. O pé salva-se, mas ela nunca mais pode voltar a dançar. Para Alabama, a dança está perdida. Para Zelda, a sanidade mental. O único jeito de prosseguir, então, é tentar compreender o que se passou. Como diz Alabama, no final: “Junto tudo num grande monte que rotulo de “o passado” em depois de esvaziar dessa maneira esse profundo reservatório que foi um dia meu ser, estou pronta para continuar”.

Esta Valsa é Minha é principalmente isto: a tentativa, apesar das mutilações, de continuar a vida. Com seus cortes bruscos, seus diálogos derramados e técnica às vezes desconjuntada, mas encharcado de emoção e entrega, o livro flui – para usar a imagem da própria Zelda – “como a corrente clara e fria de um riacho de trutas”. Depois dele, é possível compreender melhor aquela velha história de Zelda chamando os bombeiros, trancada num quarto de hotel em Paris. Quando eles arrombaram a porta, perguntando onde era o fogo, ela bateu no próprio peito e disse: “Aqui”. E é então, também que se pode compreender aqueles versos de Ana Cristina Cesar: “Chamem os bombeiros, gritou Zelda./ Alegria! Algoz inesperado”. Não, essas garotas não podiam mesmo ficar impunes – dizem todos. E veja só: Sylvia Plath, Ana Cristina Cesar, Zelda Fitzgerald e Alabama Knight – para ficarmos so nessas quatro – não ficaram. Mas deixaram versos, histórias. E lendas. Que talvez não existissem, se elas – bravas garotas – não tivessem ousado ir muito além do mediocramente permitido.


Aqui, uma resenha de Pedaços do Paraíso, coletânea de contos do casal Zelda/ Scott http://caiofcaio.blogspot.com.br/2013/03/desesperados.html






domingo, 6 de julho de 2014

"Eu descobri que a gente morre. Eu sei agora que a gente morre"

De Sobre Sete Ondas Verdes Espumantes
É belíssimo o documentário Sobre Sete Ondas Verdes Espumantes, claro que sobre Caio F., que passa hoje, 23 setembro, às 20h30, no canal Arte 1 (reprises na quinta, às 17:25 e Sábado, 18:05). Imagens dos lugares em que ele viveu e seus escritos nas vozes daqueles que com ele conviveram. Um dos momentos mais tocantes vem com imagens da avenida Paulista e logo entra Maria Adelaide Amaral lendo uma carta que Caio lhe enviou depois de assistir a peça De Braços Abertos. Está no esgotado livro de Cartas, é uma carta longa e terrivelmente bela. Segue abaixo o trecho final, lido por Maria Adelaide em Sobre Sete Ondas Verdes Espumantes, de Bruno Polidoro e Cacá Nazario.

A Maria Adelaide Amaral
Sampa, 29 de outubro de 1984
(...........)
Maria Adelaide Amaral: Sobre Sete Ondas Verdes Espumantes
Há quase dois dois meses, menos, vi a morte – e isso mudou muita coisa em mim. Está mudando. Teria que te contar devagar, com calma, como foi a história toda de ter que vestir o cadáver da mãe morta do Reinaldinho Moraes, quando eu nunca tinha visto aquilo de perto. Eu descobri que a gente morre. Eu sei agora que a gente morre. E achei feio, achei tristésimo, achei o corpo humano tão frágil, tão perecível. Fiquei doente, estou fraco, frágil, choro pelos cantos. Voltei à terapia, estou remexendo coisas fundas. Dolorosas, meio perdido, com uns problemas difíceis, materiais, de grana, de saúde, de solidão. E escolhendo não morrer, escolhendo continuar, de uma forma ainda meio cega, tortuosa, não-racional.

Ontem também fazia exatamente um ano que Ana Cristina se jogou pela janela. Eu tinha pensado nela o dia inteiro.

De Braços Abertos, a peça*
Porque chega uma hora em que você tem que escolher a vida. Eu talvez não saiba bem ainda o que isso significa, mas é claro para mim que a hora dessa escolha é agora, está acontecendo. Então ver De Braços Abertos foi outra peça que encaixou nesse quebra-cabeças cujo desenho real mal começo a intuir. Porque ela te puxa para o lado da vida, e que não é um lado facilmente ensolarado, luminoso, leve & solto. Vou falar o óbvio de Eros e Thanatos, mas o impulso para amar, para encontrar e conhecer e mergulhar no outro, é o que nos traz para perto da vida. E é por isso que quando se está de braços abertos, se está dando as costas para a morte. Ou deixando, calmamente, tão calmamente quanto possível, que ela venha a seu tempo – porque fatalmente virá.

O que acontece comigo é que eu tinha andado de braços fechados. Sem perceber. Analisando meus sonhos, ultimamente, isso tem ficado tão claro. E eu não quero mais. Ainda não sei como chegar lá, mas você me ajudou muito ontem à noite. Eu quase não conseguia falar, depois. E nem era preciso.

Acho que você está dando coisas lindas para as pessoas. Lindas com todos os componentes de dificuldades, e dores, e procuras, e tentativas e perdições. Lindas-fortes, não lindas-fáceis. Sinto uma grande admiração por você e um grande orgulho de poder me considerar seu amigo. Obrigado. Um beijo muito grande e com muito carinho. Seu

                                                                                                                   Caio F.

*Na foto, Juca de Oliveira e Irene Ravache na peça De Braços Abertos, de Maria Adelaide Amaral, o "motivo" dessa carta.

Aqui, o link do Canal Arte 1 para Sobre Sete Ondas Verdes Espumantes
http://arte1.band.uol.com.br/fragmentos-da-vida-de-caio-fernando-abreu/

terça-feira, 27 de maio de 2014

Lucidez poética

No começo dos anos 80, Caio Fernando Abreu assinava resenhas de livros na revista Veja. Aqui, já foram postadas várias, de escritores como Gabriel Garcia Marquez, Patricia Highsmith, Virginia Woolf, Julio Cortázar, Lya Luft, Adélia Prado. Abaixo, Caio resenha Sobre Loucos e Sãos, do britânico Ronald Laing (1927 - 1989), "o criador da antipsiquiatria, alçado à condição quase de guru durante os anos 70", como ele descreve. Boa leitura!

Sobre Loucos e Sãos
“Cada coisa é, na realidade, uma alucinação, cada coisa é pó, cada coisa é uma flor maravilhosa no céu” – diz Ronald D. Laing logo nas primeiras páginas deste livro (Sobre Loucos e Sãos), provando que seu pensamento, longe da rigidez teórica, cada vez mais se aproxima do discurso filosófico e literário. Apontando Albert Camus, Sartre e Kafka como fundamentais na sua formação, ele compara seus métodos de abordagem psiquiátrica aos de um romancista, quando assume “uma perspectiva sobre uma multiplicidade de perspectivas”. Talvez por isso estes textos possam ser lidos como se fossem uma obra poética.

Aos 53 anos, o criador da antipsiquiatria, alçado à condição quase de guru durante os anos 70, nessa série de entrevistas concedidas ao psicólogo italiano Vicenzo Caretti, discorre com o mesmo brilhantismo sobre temas como a filosofia zen, as viagens lisérgicas, os destinos da família, a condição da mulher, a esquizofrenia ou o amor. Seja qual for o assunto, sua preocupação básica é sempre com os seres humanos, pois o “essencial”, afirma, “é o que acontece entre as pessoas”.

Insurgindo-se contra a psiquiatria tradicional, punitiva e repressora, ele propõe novo caminho, onde exista uma emoção mais forte entre o analista e o analisado. Ao lado das mulheres, dos jovens, dos ecólogos, dos “loucos”, luta à sua maneira por uma revolução no interior dos indivíduos, “em direção a uma situação em que cada um se comporte melhor em relação aos outros”.


Culto, mas sem erudições inúteis, remete-se constantemente à filosofia oriental, à mitologia grega e à literatura contemporânea para ilustrar suas teorias. Lúcido sem ser pessimista, avisa aos que o consideram mais um profeta do apocalipse, cético e amargo: “Espero na segunda, na quinta e no domingo, e me desespero na terça e no sábado. Algumas vezes, tenho fé, outras não. Mas certamente não perdi nem a fé nem a esperança”. Como todos aqueles que, apesar das muitas provas em contrário, ainda acreditam na dignidade da condição humana”

                                                      Veja, 27 de maio, 1981




quarta-feira, 2 de abril de 2014

Sonhos: O Mundo Onde a Gente Vive Sem Censura



Outra matéria da POP, “a primeira revista para jovens do Brasil” que a editora Abril lançara em novembro de 1972. No fim dos anos 70, Caio Fernando Abreu era redator lá e é bem nessa época que começa Para Sempre Teu, Caio F., o livro que Paula Dip escreveu sobre ele. “Caio tinha muitos anos de estrada: integrou a primeira equipe de jornalistas da revista Veja, tinha vários livros publicados e premiados, havia morado na Europa. Ainda não assinava Caio F. e escrevia os contos de Morangos Mofados”, escreve Paula. “cabelos ralos, quase pretos, longos e escorridos, olhos indianos gigantescos, úmidos e de pupilas boiando e que olhavam com tristeza os telhados trágicos da rua do Curtume, na Lapa de baixo (nota: o endereço da redação)”, descreve no livro Carlos Alberto Fernandes, que era diretor da Pop. 

Sonhos

O mundo onde a gente vive sem censura

Uma velha lenda chinesa conta que, uma vez, um homem sonhou que era uma borboleta. O sonho foi tão completo e tão cheio de detalhes que, ao acordar, ele ficou numa dúvida terrível: não sabia mais se era um homem que tinha sonhado que era uma borboleta ou se era uma borboleta sonhando que era um homem.
Claro que isso é só uma lenda. Mas o que ela quer dizer é que a realidade de um sonho não é “menos real” do que aquilo que “acontece de verdade”. O sonho é a realidade do insconsciente, ou uma mensagem que o inconsciente, em forma de símbolo, envia para o consciente. Para Freud, o pai da psicanálise, o consciente está para o inconsciente assim como a superfície de um iceberg está para a sua parte submersa. Parece complicado, mas ficará mais fácil se você imaginar uma daquelas enormes montanhas de gelo flutuante. Pois aquele pedaço visível do iceberg é apenas um décimo do seu tamanho total: nove décimos ficam sob a água. Assim é o inconsciente, ou a parte desconhecida de nós mesmos; incrivelmente maior que a parte consciente.

O que acontece quando o inconsciente fica “dono da jogada

O inconsciente (ou id) não dorme nunca. Quando você está dormindo, o que adormece são a sua parte consciente (o ego) e o supergo (aquela parte “repressiva” da sua personalidade). Durante o sonho, então, o inconsciente é que fica “dono da jogada”, sem nenhuma barreira do ego ou superego. E os recados que ele envia, ou as historinhas que ele “inventa”, são a expressão daquilo que você realmente é, mas fica escondido quando você está acordado. Portanto, o sonho é como um retrato da parte oculta da própria pessoa que sonha. Reflete aquilo que você é realmente. Cada objeto ou personagem do sonho é uma criação do sonhador, e são bobagens muito grandes aquelas histórias de que, por exemplo, sonhar com “cobra, quer dizer traição”. Esses significados gerais não existem. O que é preciso saber é como você sonha com determinadas coisas, e o que elas significam dentro da sua vida. O que um sonho quer dizer é profundamente pessoal. Os artistas, principalmente os pintores, muitas vezes criam suas obras a partir de seus sonhos. Existem casos de cientistas que, depois de terem passado horas acordados, tentando resolver algum problema complicado, encontraram a solução num sonho. Os índios pigmeus costumam se reunir todas as manhãs, para que cada um conte o seu sonho. Depois, eles tiram uma interpretação que sirva para os sonhos de todos, e programam as atividades do dia de acordo com isso. Todas essas pessoas sabem da importância do inconsciente. O inconsciente “sabe” de tudo, guardou tudo – desde aquela lição da História que você aprendeu, no segundo ano primário até a mágoa de uma sacudidela mais forte que sua mãe lhe deu quando você ainda era um bebê. Isto é: o insconsciente é, em parte, um depósito de medos e frustrações. Mas é principalmente aquilo que você é.

O sonho: aquele momento escondido entre o fundo e a superfície


O sonho acontece num mundo momento especial do sono, que passa por três fases distintas. Na primeira, também chamada de pré-sono, o organismo ainda está ligado à realidade consciente. Aos poucos, a temparatura vai baixando, as batidas do coração diminuem, vem um relaxamento profundo, um repouso total: é o sono propriamente dito. Várias vezes, durante a noite, o corpo começa a “voltar”. Nos momentos entre os sonos superficial e profundo, os olhos, fechados, se movimentam rapidamente – é quando acontece o sonho. Os olhos acompanham as imagens, como se você estivesse acordado e vendo tudo. O sonho se dá, portanto, na passagem do sono superficial para o profundo, e vice-versa.
Muita gente diz que não sonha, mas está provado que todo mundo sonha, todas as noites. Algumas experiências feitas, acordando um homem sempre que seus olhos começavam a se mover durante o sono, provaram que, se ficar 48 horas sem sonhar, uma pessoa começa a ter alucinações durante seu estado de vigília, podendo até enlouquecer. Mas lembrar ou não do sonho depende de muitos fatores, inclusive da sua própria disposição para esquecer. Porque existem coisas que você sente e o seu consciente se recusa a aceitar.

Parece incrível: passamos dormindo quase um terço da nossa vida


Se você despertar no momento da passagem do sono superficial para o sono profundo, ou vice-versa, será mais fácil lembrar do sonho. Mas não é só isso. É claro que, se você se levantar imediatamente depois de acordar, tomar café e sair correndo, vai ser muito mais difícil lembrar do que se você ficar algum tempo ainda na cama, tentando “puxar” o sonho. Um bom método é ter sempre um caderno e uma caneta na cabeceira: mesmo que você anote alguma palavra ou faça um desenho qualquer, mais tarde isso poderá fazer você acordar e entender o sonho. Por que fazer isso? Ora, passamos quase um terço da nossa vida dormindo. Os sonhos, então, são nossa vida noturna, secreta e profunda. Quanto mais você lembrar seus sonhos, mais você estará conhecendo a si mesmo – e existe coisa melhor? Outra coisa que faz com que a gente tenha dificuldade de lembrar é a autocensura. Aí acontece um negócio estranho: quando você está sonhando, não há censura de espécie alguma, o inconsciente está completamente livre. Então você pode sonhar as coisas mais loucas: que está tendo relações sexuais com um desconhecido, por exemplo, ou que está matando seu melhor amigo. Ao acordar, a censura volta imediatamente a funcionar. E se o sonho foi muito “forte”, ela não vai permitir que você lembre. É justamente por isso que a grande maioria dos sonhos parece confusa ou absurda. Além da linguagem do inconsciente ser quase desconhecida para nós, as defesas do ego e superego fazem tudo para parecer ainda mais complicado. A educação que a gente recebeu, a moral da família, todas aquelas divisões que colocaram na nossa cabeça, do que é “bom” ou “mau”, de como se deve ou não agir – tudo isso atua sobre nosso comportamento. Na verdade, só somos completamente livres no inconsciente e, quanto mais ele for conhecido , mais completamente saberemos quem somos . Por isso a psicanálise dá tanta importância ao mundo dos sonhos.

A única possibilidade de conhecer a nossa face oculta


Para Sigmund Freud, o sonho revelava sempre desejos reprimidos, frustrações, culpas, medos ocultos. Mas para outros psicanalistas importantes, como Carl Gustav Jung, os sonhos têm também outros sentidos – podem até ser premonitórios, isto é, falar de alguma coisa que vai acontecer na realidade, antes que aconteça. Na linha da Gestalt-terapia, descoberta por Frederick Pearls, o sonho expressa principalmente situações de vida que não foram resolvidas. Sonhos que se repetem muito, especialmente pesadelos, seriam um problema à espera de solução. Todos os sonhos são pequenos fragmentos de nossa personalidade, e até mesmo sua expressão mais espontânea. Na Gestalt-terapia, existe um truquezinho para entender melhor os sonhos: o psiquiatra pede à pessoa que conte o sonho no presente, como se ele estivesse acontecendo. Então, ao invés de dizer, por exemplo:
“Eu sonhei que estava num barco”, você diz: “Estou num barco”. E é importante que você tente se sentir não apenas você mesmo, naquela situação, mas também o barco, a água e todos os detalhes do sonho, um por um. Cada elemento é um pedacinho de você. Pearls diz que o sonho jamais é confuso ou absurdo enquanto estamos dentro dele. Mesmo que você sonhe que está voando, isto vai parecer tão natural quanto caminhar. Na Gestalp-terapia, o teatro não está no sonho. Ele está aqui, na atividade diária, onde representamos um papel que, às vezes, não sabemos qual é. E podemos concluir, paradoxalmente, que é exatamente quando estamos acordados que nos encontramos “dormindo”. Frequentemente, você não entende porque começa a ter pesadelos num momento da sua vida em que parece tudo correr bem. O que acontece, então, é que durante o dia você “finge” perfeitamente que tudo está ótimo – e a verdade só vem à tona à noite, sob a forma de sonho. É a verdade mais profunda, que, embora você disfarce, encontra sempre uma maneira de aparecer. Pode parecer esquisito, mas aquela pessoa que diz que não dá a mínima para os sonhos, que prefere se preocupar com a realidade, na verdade sabem muito pouco de si mesma. Quanto mais você prestar atenção a esses recados que o inconsciente envia, mais ficará consciente de quem realmente você é. Isso é o mais fascinante do reino dos sonhos: a possibilidade de conhecer a nossa face oculta.

                                   Revista Pop, 1978

domingo, 16 de fevereiro de 2014

O Homem e o Futuro

No fim dos anos 70, Caio Fernando Abreu era redator da POP, “a primeira revista para jovens do Brasil” que a Abril lançara em novembro de 1972. É bem nessa época que começa Para Sempre Teu, Caio F., o livro que Paula Dip escreveu sobre ele. “Caio tinha muitos anos de estrada: integrou a primeira equipe de jornalistas da revista Veja, tinha vários livros publicados e premiados, havia morado na Europa. Ainda não assinava Caio F. e escrevia os contos de Morangos Mofados”, escreve Paula. “cabelos ralos, quase pretos, longos e escorridos, olhos indianos gigantescos, úmidos e de pupilas boiando e que olhavam com tristeza os telhados trágicos da rua do Curtume, na Lapa de baixo (nota: o endereço da redação)”, descreve no livro Carlos Alberto Fernandes, que era diretor da Pop.

Era a fase final da revista e Caio publicou ali algumas matérias com temas que o interessavam: ecologia, sonhos, previsões. Abaixo, Caio F. se lança ao mundo do futuro, em texto publicado há 35 anos, em setembro de 1978, o mês em que ele completou 30 anos.

                             
                           
                     As Fantásticas previsões estão se tornando realidade

                                Desde Flash Gordon até Guerra nas Estrelas
                                os autores de ficção científica tentam desvendar 
                                o futuro da humanidade. Você vai ver agora como 
                                alguns deles até já anteciparam a realidade.

Você certamente já ficou olhando para as estrelas, pensando na imensidão do céu e na insignificância do ser humano, perdido num planeta pequenino. Talvez tenham lhe ocorrido perguntas como “quem somos?”, “de onde viemos?”, “para onde vamos?” E é provável que tenha conseguido, pelo menos em parte, responder às duas primeiras. Neste “para onde vamos?” é que a ciência vacila e a imaginação se solta: para um homem das cavernas, não seria incompreensível um simples telefone, ou uma televisão? Será que dentro de um século os homens de 1978 não parecerão tão primitivos como nossos antepassados das cavernas? Em assunto como esse, a mente dos poetas parece ir mais longe que a dos cientistas: a razão pura mistura-se com fantasia. E cada vez mais a ficção científica antecipa a realidade do futuro.

Foi assim que o escritor Julio Verne em Da Terra à Lua, previu quase exatamente o voo da Apolo 8, em 1969, com coincidências espantosas. As primeiras edições do livro, de quase cem anos atrás, traziam como subtítulo “Trajeto Direto em 97 Horas”. Os astronautas americanos foram à Lua em 69 horas. Julio Verne fala também da necessidade de o foguete alcançar a velocidade de 11.000 metros por segundo: exatamente a velocidade da Apolo 8 para sair da órbita da Terra. Coincidências ou não, elas não param por aí. Verne imaginou também que três astronautas partiam de uma base em Tampa, na Flórida, a pouquíssima distância do verdadeiro Caba Canaveral de hoje. Havia algumas diferenças: no livro, o foguete era colocado em órbita por um gigantesco canhão, e os astronautas ficavam girando eternamente na órbita lunar. Os leitores ficaram furiosos com esse final, e Julio Verne teve que escrever uma continuação, Em Torno da Lua. E as coincidências prosseguem: a descrição das crateras é praticamente a mesma feita pelos astronautas reais, e o lugar que ele assinalou no oceano Pacífico para a descida da cápsula ficava a pouca distância do local onde os americanos realmente desceram.

Alex Raymond, o criador de Flash Gordon, foi outro grande profeta do futuro. Em 1934, suas histórias em quadrinhos já previam os cintos e sapatos antigravitacionais, os capacetes espaciais e – essa é incrível! – até a minissaia, que Mary Quant lançaria trinta anos depois. E além da moda, ele também desenhou com perfeição o trem-bala, que hoje faz o percurso Oska – Tóquio; os aparelhos de televisão; o lançamento vertical de foguetes (as torres que hoje existem na Rússia e nos Estados Unidos são idênticas aos seus desenhos). Até o raio laser, que ainda está sendo aperfeiçoado, já era arma comum nas aventuras de Flash Gordon. E tanta coisa mais que um dos boletins oficiais da NASA informou que a saída do astronauta da nave espacial foi solucionada porque os cientistas eram velhos leitores e colecionadores das histórias em quadrinhos de Flash Gordon.


Quando Alex Raymond morreu, em 1956, num acidente, talvez tenha carregado consigo a resposta a uma pergunta que poucas pessoas saberiam responder: como será o futuro da humanidade?


Hoje, é relativamente fácil para um cientista garantir que em 1980 o homem pisará em outros planetas; que em 1990 será possível a inteligência artificial, ou que em 2020 a meteorologia e a hereditariedade poderão ser controladas. A diferença entre essas previsões e as de Raymond é que, há mais de quarenta anos, não existia base científica para isso. A investigação sobre o futuro sempre foi um dos temas preferidos do cinema, desde que, em 1902, o francês Georges Méliès filmou um ingênuo e mudo Viagem à Lua, cheio de monstros. Os monstros dominaram os filmes de ficção científica até a explosão da bomba atômica em Hiroxima, em 1945. As aranhas gigantescas e os homenzinhos de mil braços deram lugar a outro tema: o perigo nuclear. Os filmes da época pareciam um trecho do Mundo Libertado, de H. G. Wells, onde aparece “uma Terra em que nada mais resta senão um luar escarlate e púrpúreo e um ruído contínuo, avassalador”. Depois de uma pausa, nos anos 60 (quando foram feitas duas obras-primas do gênero: Alphaville, de Godard, sobre uma cidade robotizada, e Farenheit 451, de Truffaut, sobre proibição e queima de livros), recentemente os filmes de FC voltaram a todo vapor. E o incrível sucesso de Contatos Imediatos prova que a imaginação das pessoas anda solta no cosmo. Mas as fantasias não são sempre otimistas. Para um divertido Guerra nas Estrelas ou um poético Contatos Imediatos, existem terríveis previsões – como as de Fuga no Século 23, Ano 2000: Corrida da Morte, Travessia Para o Futuro, Onde Ninguém Tem Alma, No Mundo de 2020, Rollerball ou O Planeta dos Macacos.

Segundo os críticos, há três características comuns nesse tipo de filme. Primeiro: o país do futuro é um país acabado – a guerra acabou, a poluição acabou, a poluição acabou, a luta social acabou. A sociedade atingiu o bem-estar absoluto, tudo é dividido igualmente entre todos. Segundo: a distância entre os homens e os centros de programação e controle é cada vez maior. O computador é o centro da sociedade, e em voltam dele pessoas especiais cuidam da fiscalização e segurança. Terceiro: as pessoas comuns são treinadas como máquinas, agem sob o controle de drogas de um cérebro eletrônico ou dos meios de comunicação. Todos esses filmes partiram do maior clássico do gênero: Metrópole, do alemão Fritz Lang, de 1927. A cidade futura imaginada por ele se divide em dois níveis. Na superfície há jardins, torres de aço e vidro, viadutos, carros e naves para uso exclusivo de “pessoas especiais”. No subterrâneo, em cavernas escuras e cheias de máquinas, vivem os operários: seres mecanizados, vigiados por máquinas, robôs e câmeras de TV.

Em muitos filmes, a natureza já não mais existe, o mundo está superlotado, as cidades protegidas por redomas e o ar insuportavelmente poluído. Em No Mundo de 2020, um dos mais assustadores, máquinas enormes apanham pessoas para triturá-las e transformá-las em tabletes verdes que alimentam o resto da população. E os rios, as flores, os animais, as árvores – tudo morreu. Imaginação? Nem tanto, se pensarmos nos problemas reais deste nosso planeta em pleno 1978.

Diz Steven Spielberg, diretor de Contatos Imediatos do Terceiro Grau: “O que vale agora é a impressão do que poderá ser, e não mais do que poderia”. Por isso, informações do filme basearam-se em documentos verdadeiros da NASA, sobre discos voadores. Não são “fantasias”, mas possibilidades bem próximas do real.

Quando se volta para o futuro, a literatura não é muito diferente do cinema. Pelo menos é o que se pode julgar a partir de dois grandes romances, clássicos do gênero: 1984, de George Orwell, e Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley (outro incrível profeta). No primeiro, um mundo onde todos são observados por enormes tele-telas e obrigados a trabalhar para “refazer o passado”, corrigindo e modificando sem parar notícias que possam abalar a impressão do povo de que está “tudo bem”. No Admirável Mundo Novo, Huxley previu um fato que agora começa a tornar-se possível: os bebês criados artificialmente  em laboratórios. Numa “sociedade perfeita”, as pessoas são fabricadas em categorias: desde o Alfa-Mais (a raça superior), até os Ipsilones, verdadeiros escravos sem nenhuma consciência. Mas todos são calmos e felizes: uma droga distribuída nos fins de semana – o soma – mantém o povo contente. Ou iludido.

Mas existem outros livros interessantes, divertidos ou assustadores. Desde Kurt Vonnegut Jr. – o autor preferido dos universitários norte-americanos -, até o poético Ray Bradbury, que já teve filmadas algumas de suas histórias (como Farenheit 451 e Uma Sombra Passou Por Aqui). E outros, como Isaac Asimov, Clifford Simack, Anthony Burgess (o autor de Laranja Mecânica) ou Walter M. Miller, do bonito Um Cântico Para Leibowitz. Em todos eles, a preocupação com aquela terceira pergunta: para onde vamos, afinal?

As respostas nem sempre são positivas: as centrais nucleares podem permitir até mesmo o controle do clima, mas também podem causar acidentes fatais a milhões de pessoas. As viagens espaciais trazem o problema do lixo cósmico. O desenvolvimento industrial provoca a poluição dos rios e do ar. O progresso parece ter duas faces opostas: uma cheia de promessas maravilhosas, como o conhecimento de outros planetas e o aperfeiçoamento da raça humana. Outra, terrível, que pode provocar a destruição de todo o planeta e de toda a humanidade.

Há mais de cem anos, Julio Verne parecia saber disso quando escreveu no seu primeiro romance: “De tanto inventar máquinas, os homens acabarão sendo devorados por elas! Sempre imaginei que o último dia seria aquele em que alguma imensa caldeira, aquecida a três bilhões de atmosferas, fará explodir o nosso pobre planeta”.

Seria bom que ele estivesse enganado desta vez. Como seria bom, também, que no ano 2000 pudessemos ainda repetir as mesmas palavras que Yuri Gagarin disse em 1961, ao ver nosso planeta do espaço: “A terra é azul”. Seria bem mais fácil manter vivo o azul se cada um tivesse consciência que o hoje começou a ser construído ontem. Assim como o amanhã já está sendo construído neste exato momento do dia de hoje.

                                               Revista Pop, setembro de 1978


terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Felizes para sempre


Uma mulher está à beira do inferno. A seu lado, um homem escreve uma carta de amor Andar sozinha, sem apoio transformou-se numa prova difícil demais. Há dois meses você anda cada vez com mais dificuldade, você se agarra aos móveis, a mim. Os efeitos do álcool se tornam visíveis, terríveis.

Essas frases acima – e as demais, em negrito, intercalando este texto – pertencem a M.D., livro de Yann Andréa que a editora Marco Zero acaba de publicar. Quem ou quê significa essa sigla, esse M, esse D? Quem é esse Yann Andréa? O livro não dá pistas. Uma capa inteiramente branca, com aquelas iniciais, discretas em azul-claro. Nenhuma foto, nenhuma informação na contracapa. Um pequeno mistério: M.D.

Nas lágrimas, Trouville, o verão, a primeira garrafa de vinho, comprada por sua ordem, a obediência a tudo, até as lágrimas também, e eu diante de você, olhos, fechados, suplico que você me ame.

M.D., a orelha ou um folhear rápido no livro revela, são as iniciais da escritora e cineasta francesa Marguerite Duras. Yann Andréa, o nome de seu companheiro, também cineasta, que de agosto a novembro de 1982 registrou num caderninho, em forma de diário, o processo de desintoxicação alcóolica de sua amiga? Amada? Cúmplice? Depois de ler o livro (curtinho, 105 páginas), fica difícil encontrar uma palavra para definir a relação de Yann com Marguerite. Enfermeiro? amante? biógrafo? Todas essas tentativas, e mais algumas. O que Yann sente por Marguerite é imenso. Respeito, fascinação, carinho (o carinho que se tem por algo que é frágil como nós, não por uma coisa boba), piedade (a piedade que se tem pelo que é humano e carente como nós, não por alguém incapaz) e, quem sabe?, Isso que chamam de amor? Nunca em minha vida li uma carta de amor tão linda quanto a que Yann Andréa escreveu para Marguerite Duras.

Ponho a colcha branca sobre seus joelhos, recubro as pernas, não deixo nenhum espaço exposto ao frescor do ar, abraço você, guardo você, você não sabe, você dorme.

Internada em Nevilly, Hospital Americano de Paris, por vontade própria, Marguerite Duras – aquela Duras, que inicia O Amante, um dos livros mais belos deste século, descrevendo a devastação do álcool e do tempo no próprio rosto – tenta emergir de um inferno de álcool e ansiolíticos. Dienpax, Mogadon, Valium, Aldactone. Ela quer terminar seu livro, A Dança da Morte. Deitada na cama do hospital, num raro momento de lucidez, entre visões e tremores, Marguerite diz: “A única coisa que importa é a loucura, não ter medo de se perder de si mesmo”. Mas ela mesma não quer se perder de si. E, todos os dias, Yann está a seu lado. Até a noite. Depois, ele volta para o apartamento onde ela não está mais.

O carro avança, as lágrimas vêm. Não quero chorar. O motorista se cala, põe um cassete: Billie Holiday canta My Man.

Ele esquece todo o resto. Ele está voltado apenas para ela, que, numa cama de hospital, luta contra si mesma. Ele não se importa de não ter mais uma vida, desde que possa ficar ao lado dela. Por algumas horas, todo dia. Ela o acusa de coisas que ele não fez, ela fala coisas duras, Ele faz que não ouve. Ele a ajuda a lavar-se, ele a tranquiliza, Ele observa cada movimento dela em direção à luz ou à treva. Então se alegra, ou se entristece. Porque ele também tem problemas.

Estou diante do telefone sem poder falar. E depois, finalmente, as lágrimas. Esta vontade de álcool não passa.

Mas ela acaba por vencer. Os escritores são mestres em criar seus próprios infernos, só para descobrir formas de se ver livres deles. Em todas as esquinas desse labiirinto infernal, Yann permanece ao lado de Marguerite, mão na mão. Continuam juntos? me pergunto na noite tardia de sábado, ouvindo Thelonious Monk. De alguma forma, certamente sim, me respondo. Porque aprendi que esses amores capazes de superar o primeiro impulso que determina o próprio amor – a atração física – ah, esses amores não terminam nunca. (E nós aqui, vivendo essa coisa tão assustada e média...)

Não ouço nada, você deve estar no seu quarto, à sua mesa, você deve estar não olhando, através da cortina branca, como de hábito.

Yann e Marguerite foram felizes para sempre, eu invento. Preciso.


                            OESP – Caderno 2, Quarta-feira, 30 de setembro de 1987

Nota: Marguerite apaixonou-se por Yann nos anos 80. Ele era 38 anos mais novos. Viveram juntos até a morte ela, em 1996.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Duas ou três coisas sobre Fernandinha



Com Fim, Fernanda Torres estreou como escritora no finalzinho do ano passado. É bem interesasnte ler esse encontro com Caio F. em abril de 1986, quando Fernanda tinha 20 anos, estrelava a novela das oito (Selva de Pedra) e o filme Eu Sei Que Vou Te Amar chegava aos cinemas e ainda não havia passado em Cannes, onde ela ganhou o prêmio de melhor atriz. Abaixo, o perfil de Fernanda por Caio F., quando ele tinha 37 anos.

                                     
                                   Duas ou três coisas sobre Fernandinha

                                             No momento, Fernanda Torres
                                              tem um único projeto:
                                              terminar Selva de Pedra

Fernanda Torres é uma meninona tranquila nos seus 20 anos. Uma estrela? Nada disso, apesar de tantos trabalhos e prêmios. “É que juntou tudo, cara. Fico assustada, mas também fico fria”. Eu faço perguntas que ela responde com outras perguntas: “Você não acha que a gente tem que aprender a transformar as coisas? Claro que pintam trabalhos desagradáveis, mas sempre pode ter uma pérola no meio, que você não está vendo. Eu tenho me perguntado muito o que é bom? O que é careta? O que é vanguarda? É muito raro encontrar o belo e o bom em estado puro – eles vêm misturados com outras coisas. A gente vai aprendendo a separar. E às vezes mistura tudo”.

De tudo que fez ultimamente, ela está mais entusiasmada com Com Licença Eu Vou à Luta, em que faz o papel de uma garota bêbada e mãe solteira aos 15 anos.

Fernanda tirou o pé da adolescência faz pouco. E transa análise lacaniana. Acha difícil responder perguntas, ser questionada sobre os rumos do País, o pacote econômico, a libertação da mulher, o cometa Halley, e por aí vai. Mas adora quando acontecem coisas como, na semana retrasada, quando foi comprar uma cabra para seu sítio. O vendedor de cabras ficou maravilhado: “Dona Simone, tá vendo esta cabrinha? Ah, dona Simone, a senhora tem sofrido tanto com aquele marido... vou lhe fazer um precinho camarada nesta cabrinha”.

Com Tony Ramos em Selva de Pedra
Sobre projetos, o único que ela tem é terminar Selva de Pedra. Suspira. E faz uma fantasia rápida sobre a transformação de Simone em Rosana Reis: “Eu queria mesmo é que ela voltasse bem punkona mesmo. Ela tinha que barbarizar, porque a Simone é uma corna mansa... “. É ruim fazer telenovela? “Nada, menino. É libertador você descobrir que a telenovela não tem a menor lógica. Igualzinho a vida. Até ajuda a entender um pouco mais as coisas. Ou desentender. O que dá no mesmo, não é verdade.


             OESP, na capa do Caderno 2, quinta-feira, 17 de abril de 1986