domingo, 22 de setembro de 2013

Bocejo do bruxo

Caio F. escrevendo sobre escritores que ele adorava. Agora é o mexicano Carlos Castaneda. Em posts anteriores, você vai encontrar resenhas dele sobre livros de Gabriel Garcia Marquez, Patricia Highsmith, Virginia Woolf, Julio Cortázar, Zelda e Scott Fitzgerald, Simone Beauvoir e Lya Luft. Boa Leitura!

                                    Bocejo do Bruxo

Há quase dez anos, terminado o sonho hippie, a voz do antropólogo Carlos Castaneda foi como uma massagem revitalizante nas cabeças fatigadas por drogas, à beira da incerteza dos anos 70. Os ensinamentos do velho índio yaqui Don Juan pareciam acenar com a possibilidade de uma outra viagem, menos feérica talvez que as lisérgicas, mas igualmente estimulante na maneira como tentava interpretar os diversos níveis da realidade, nas páginas de A Erva do Diabo.

Guru transitório de uma geração demasiado volúvel (ou apenas desesperada?) na forma como troca rápida e sofregamente de ídolos, nos livros posteriores Castaneda não cumpriu as expectativas. Os claros ensinamentos de Don Juan, curiosamente impregnados da simplicidade complexa do zen-budismo, complicaram-se ao infinito.


Como filósofo, ou no mínimo porta-voz do filósofo Don Juan, Castaneda tornou-se decepcionante. E, como contador de histórias, incorreu num pecado mortal: a chatice indisfarçável.

Infelizmente, O Presente da Águia não foge à regra. Declarando-se muito distante do seu ponto de origem como homem de padrão ocidental ou mesmo como antropólogo, Castaneda faz questão de esclarecer que “este trabalho não é uma ficção”. Não sendo ficção, nem antropologia, nem filosofia, torna-se difícil e monótono acompanhar as confusas andanças do autor em companhia de outros nove aprendizes de feiticeiro. Os iniciados, quem sabe, talvez encontrem algum prazer, mas quem estiver em busca de qualquer coisa aplicável ao mísero cotidiano dificilmente escapará a um melancólico sentimento de frustração. Ou a um sonoro bocejo de puro tédio.
                                         
                                     Veja, 21 de Outubro de 1981


quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Cenas na Beira de um abismo


                                                        Na manhã do Rio, crescia
                                                        o tumulto. Era o povo ferido
                                                        exigindo seus direitos

Exterior Dia Rio de Janeiro. Onze horas da manhã de terça-feira. 30 de junho de 1’987. Manhã de céu alucinadamente carioca. Azul, Azul. Névoa transparente sobre a baía, o mar e os morros, que vai se diluindo aos poucos. A névoa vira nuvem, a nuvem vira azul. Ar tão limpo que quase dói nos pulmões paulistanos. Na janela do carro, pelo aterro, uma velha letra do Caetano volta como trilha sonora: “Olhos abertos em verde sobre o espaço do aterro, sobre o espaço, sobre o mar, o mar vai longe do Flamengo o céu vai longe e suspenso”.

Interior Dia Quase meio-dia. Biblioteca Nacional, Cinelândia. Cheiro gostoso de livro, paz. Estudantes, professoras. Tudo quieto, organizado. Estou debruçado com Lucia Villares sobre microfilmes de jornais do século passado. Dezesseis de julho de 1889, o dia em que tentaram matar Dom Pedro II. Um ruído – buzinas, gritos –, vindo de fora, entra pelas janelas abertas, misturado ao azul, e começa a crescer. Comento “Eita Brasil biblioteca precisa de silêncio e toda essa zona lá fora...” Algumas pessoas começam a levantar das mesas, espiam pelas janelas. Deixo de lado os microfilmes, resolvo também dar a minha espiadinha. Me debruço numa janela. E vejo.

Exterior Dia Cinelândia, Avenida Rio Branco. Teatro Municipal. Cerca de dez pessoas estão paradas em frente a um ônibus. Gritam coisas tipo “Abaixo o aumento!”. O ônibus não pode seguir em frente. Os ônibus e carros que estão atrás, também não. O engarrafamento aumento. Lembro de ter lido nos jornais que o preço das passagens de ônibus foi aumentado. É que pensei assim – ué, não estava tudo congelado? O tumulto cresce.

Começa a juntar mais povo. Povo – povo: trabalhadores do Brasil – eu, você, nós. Estão furiosos. De longe, pode-se ler no rosto deles que estão cansados, com fome, sem dinheiro. O grupo duplica, quadriplica.

Interior Dia No grande salão da Biblioteca, não há ninguém nas mesas. Todos na janela olham o povo, que aumenta e grita e aumenta e grita mais. Impossível concentrar-se. O barulho de coisa viva, tensa, prestes a explodir, impede qualquer concentração.

Exterior Dia O povo que estava dentro dos ônibus engarrafados desceu para a rua, juntou-se ao outro povo. Agora sacodem violentamente os ônibus. Chegam alguns carros de polícia. Sirenes uivam. O povo joga pedras e vaia. Saia-justa a polícia tira o time. Ou finge que tira pela janela de um carro, o policial joga no ar algo parecido com um foguete de São João. Quando o foguete bate no asfalto, ouve-se um ruído igual ao de um tiro. Fumaça, gente com as mãos nos olhos, gás lacrimogêneo. Da janela, dá quase para ouvir, por trás dos gritos, o coração das pessoas batendo forte. Inclusive o meu. E o coração do povo, mais forte ainda. Exausto, humilhado, atrevido, corajoso.

Interior Dia As moças da Biblioteca resolvem fechar o prédio. Estão apavoradas. As pessoas se entreolham: medo. Com as janelas fechadas, entre os livros, o rugido do povo que chega lá de fora fica ainda mais assustador. Um funcionários nos leva pelos corredores até uma saída lateral. Saída discreta pelos fundos.

Exterior Dia Zona na rua. Praça de guerra. Gente caminha apressada. Polícia chegando. Bancos e lojas fecham. Convido Lúcia: “vamos dar o fora já daqui?”. Vamos para o Largo do Machado. Marrocos perde. O povo brasileiro nunca esteve tão pobre, tão feio, tão triste. E com tanto ódio, com toda a razão. Congela e corta num mendigo.

Interior Noite São Paulo, três dias depois. Meu quarto. Não consigo dormir. Penso no que vi, penso no Brasil. Abro o caderno Ideias do JB. Uma pequena entrevista do Mario Quintana me alivia a alma: “O Brasil não pode cair no abismo porque ele é maior do que o abismo”. Amém, velho, bom e sábio tio Mario. Deus te ouça

                              OESP – Caderno 2, 8 de julho de 1987

E aqui, Paisagem Útil, a canção do Caetano que Caio F. cita lá no começo