quinta-feira, 28 de março de 2013

Desesperados

Neste especial, Caio F. escrevendo sobre escritores que ele adorava. Agora é Zelda e Scott Fitzgerald. Já teve Gabriel, Gárcía Márquez, Patricia Highsmith, Virginia Woolf, Julio Cortázar e Simone de Beauvoir. nos posts anteriores. Abaixo,uma resenha do Caio sobre Pedaços do Paraíso, coletânea de contos do casal Fitzgerald. Boa leitura!


Entre as muitas lendas, verdadeiras ou não, que correm sobre Zelda Fitzgerald, uma talvez tenha um significado especial. Conta-se que, certa vez, trancada em um quarto de hotel, Zelda colocou a cidade em polvorosa ao quebrar o alarme contra incêndios. Quando os bombeiros arrombaram a porta, perguntando onde estava o fogo, Zelda disse batendo com o punho fechado sobre o peito: “Aqui!”. Anos mais tarde, por uma dessas trágicas coincidências, ela morria queimada no incêndio do hospício onde estava internada enquanto Scott sobrevivia escrevendo roteiros para filmes em Hollywood.

Mas esta história talvez sintetize o espírito dos dois, e o espírito desses belos Pedaços do Paraíso, que reúne seus contos, Havia no peito de Scott e de Zelda uma incendiada paixão pela vida, que o grande craque da Bolsa de Nova York apagou, em 1929, precipitando a ela na loucura e a ele na luta amarga pela sobrevivência.

Reunidos pela filha dos dois, Scottie, em 1973, estes contos trazem à tona farrapos coloridos daquele período. Seriam textos menores, escritos com o objetivo específico de ganhar dinheiro. Inútil procurar neles a beleza trágica de Belos e Malditos ou Suave é a Noite, mesmo assim persiste aqui o mesmo encanto indefinivel, a mesma finura, a mesma compreensão dos defeitos humanos.

A surpresa são os textos de Zelda. Consciente de suas deficiências, ela justifica-se ao final do melancólico A Garota de Um Milionário: “(...) talvez eu seja cínica demais e, quem sabe, não muito competente para julgar esses casos de amor”. Não era. Mesmo mal acabados, seus contos são cheios de uma profunda e torturada sensibilidade, talvez a mesma que a levou à loucura. Produzem no leitor um riso ao mesmo tempo divertido e amargo.

Para quem os amou e ainda os ama, este livro os traz de volta. Belos, bêbados, delirantemente românticos e desesperados. Cheios de vida, enfim. Ou da vida possível quando os tempos e as emoções eram outros.

                                Pedaços do Paraíso, de Zelda e Scott Fitzgerald

                                                    Veja, 20 agosto de 1980

segunda-feira, 18 de março de 2013

Pobres moças

Agora é Simone de Beauvoir aqui, neste especial com Caio F. escrevendo sobre escritores que ele adorava. Já teve Gabriel, Gárcía Márquez, Patricia Highsmith, Virginia Woolf, e Julio Cortázar nos posts anteriores. Abaixo,uma resenha do Caio sobre Quando o Espiritual Domina, livro de Simone de Beauvoir. Boa leitura!

  
Escritas quando Simone de Beauvoir se aproximava dos 30 anos, essas histórias foram recusadas por dois editores sob a alegação de que não formavam “um conjunto coerente que se pudesse chamar de romance”, além de faltar relevo às heroínas e aos protagonistas masculinos”. Desde então, por autocrítica da autora, dormiram no fundo da gaveta. Até o final do ano passado, quando foram publicadas na França com rápido e estridente sucesso.

De fato, Quando o Espiritual Domina (título ironicamente inspirado num ensaio do pensador católico Jacques Maritain, Primazia do Espiritual) viola a divisão acadêmica entre novela e romance, interligando sutilmente cinco histórias. Antecipando-se sem nenhum ranço aos movimentos feministas, já na década de 30 Beauvoir fazia uma literatura genuinamente do ponto de vista feminino, sem poupar a seus personagens os mesmos preconceitos e distorções que denunciaria mais tarde em O Segundo Sexo. No centro do romance está o amor, o que Marcelle sente por Dennis ou o que Chantal vê Monique sentir por Serge, ou ainda o que Anne e Lisa sentem por Pascal. Em todos os casos, ele é falso – porque baseado na humilhação, na inferioridade frente ao sexo masculino. Aos poucos, o título vai crescendo de sentido, o “espiritual” domina quando o corpo e seus desejos reais são negados ou iludidos. Ou quando as informações livrescas superam as vitais.

Quando o Espiritual Domina, de Simone Beauvoir, Nova Fronteira, 241 páginas

                                                Veja, 10 de setembro 1980 

sexta-feira, 15 de março de 2013

Bruxo da palavra


Aqui, um especial com Caio F. escrevendo sobre escritores que ele adorava. Já teve Gabriel, Gárcía Márquez, Patricia Highsmith, Virginia Woolf, e Julio Cortázar nos posts anteriores. Abaixo, mais uma resenha do Caio sobre Cortázar e o livro Alguém que Anda Por Aí. Boa leitura!


E se de repente, pergunta Cortázar, no papelzinho saído de uma câmara Polaroid começasse a delinear-se não a imagem fotografada, mas qualquer coisa como Napoleão e seu cavalo? Tirando Napoleões das palavras como quem tira coelhos de cartolas, páginas após páginas ele se empenha em fazer explodir a suposta razão do leitor. É o leitor que, paradoxalmente, sai ganhando nesse jogo estranho.

"alucinante jogo de espelhos"
Em onze histórias densas, elegantes e personalíssimas, Cortázar retoma seus inquietantes pontos de vista sobre a realidade, conseguindo manter a atenção presa não só às tramas carregadas de mistério e emoção, mas também voltada para as magias formais com que salpica seus enredos. Bruxo da palavra, subverte a realidade circunstancial, transformando-a num alucinante jogo de espelhos, em que nunca se sabe onde termina o reflexo começa a realidade. Ele pratica aquele tipo raro de literatura revolucionária não por pretender diretamente mudanças sociais mas por ser capaz de modificar e ampliar a visão de mundo de quem o lê. Logo na abertura, em Troca de Luzes, um Pigmalião molda pacientemente sua Galatéia, até descobrir que, à sua maneira, ela também é um Pigmalião. No erótico e angustiante A Barca ou Nova Visita a Veneza, as falhas do texto são criticadas por um personagem.

Para quem amou o Cortázar de Final de Jogo ou Bestiário, estranhando as invencionices um tanto frias do Livro de Manuel ou Modelo Para Amar, um mergulho nas águas fundas deste livro trará o encantamento do reencontro com uma paisagem conhecida. Para quem ainda não leu, dificilmente haveria apresentação mais estimulante.

                                                             Veja, 15 de Julho 1981