segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Entregue às baratas

Bolero à Grega, o post anterior sobre Garcia Márquez e seu Crônica de Uma Morte Anunciada, deu partida a uma seleção de resenhas e críticas de Caio F. com escritores que ele adorava. Agora é Patricia Highsmith, "a musa heavy dos policiais", como ele escreve. Entregue às Baratas está abaixo. Boa Leitura.


                                                        Patricia Highsmith tira
                                                        férias do romance policial
                                                        mas leva a ferocidade
                                                        na bagagem

Se, da autora de O Amigo Americano, você só espera ler mais uma daquelas sombrias histórias de crime, mistério e muita, muita tensão psicológica – ledo engano. Ledo sim. Jamais frustrante. Ao contrário: nos 10 contos que compôem estas Catástrofes (nem tanto) Naturais – tradução apenas aproximada do original Tales of natural and unnatural catastrophes – Patricia Highsmith, a musa heavy dos policiais, deixa bem claro que sua literatura é perfeitamente capaz de superar rótulos redutores para invadir terrenos antes palmilhados pelos mais chegados numa science-fiction, num romance-reportagem ou naquilo que, há duas décadas, foi graciosamente batizado como “realismo fantástico”. Em se tratando de Highsmith, porém, nada de graciosidades, frieza documental ou gentis ETs. Ferocidade é sempre com ela. E disso – felizmente para as cabeças pensantes – Highsmith nunca abriu mão.

E aqui ela está possessa. Seus criminosos, desta vez, têm nomes e podem ser identificados, às vezes na primeira linha de cada conto. São quase sempre os dirigentes do mundo, seja este primeiro ou terceiro: o presidente Buck Jones (Reagan?) e sua esposa alcoólatra, Millie, que por puro pileque desencadeia uma guerra nuclear planetária (em O presidente Buck Jones incita ao patriotismo), ou Bomo (Bokassa?), ditador da “vasta e fértil terra de Nabuti, na África Oriental”, que vê seu palácio transformar-se numa espécie de túmulo, exatamente durante a visita de uma comissão da ONU. Colhidas na exarcebação das notícias de jornal, as catástrofes de Highsmith não se limitam a ser assustadores ou subversivas. Podem também ser muito engraçadas, como a história do Papa Sisto VI (João Paulo II?) que, graças a uma violenta topada no dedão do pé, encampa subitamente a Teologia da Libertação e começa uma revolução social no mundo inteiro. Para rebater risos fáceis, mergulha na pungência de Moby Dick, a Baleia Míssil, reescritura cruel de Melville, um protesto ecológico tão inquietante quanto uma foto do desmatamento amazônico.

Difícil destacar um ou outro texto num livro que, além das qualidades literárias e da enfurecida crítica aos loucos poderes, possui ainda uma unidade rara para uma coletânea de histórias curtas. Mas talvez seu núcleo temático concentre-se principalmente em Problemas no Torres de Jade, crônica de um finíssimo prédio de apartamento de 88 andares. Invadido por baratas cada vez mais gigantescas, o Torres de Jade transforma-se aos poucos num tótem real e metafórico de apodrecimento social: por baixo dos mármores, das abóbadas verde-jade e de todas as delícias do consumo, fervilha um indestrutível ninho de baratas. Impiedosa, Highsmith dispara sua metralhadora cheia de fúria contra as campanhas imobiliárias, as agências publicitárias, o jornalismo mundano e, mais além (ou aquém?) das máquinas fabricantes de modismos, contra os seres patéticos que a maioria de nós se tornou, disposta a tudo apenas para manter as aparências do chic.

O mesmo acontece no cínico Operação Bálsamo, que trata de um hipotetico grupo – o CNN (Comissão de Controle Nuclear) – encarregado de “disfarçar” o lixo nuclear da usina de Three Mile Island. Claro, sempre é possível que alguém se aborreça com Alugam-se Úteros, ache gratuito o humor de Cemitério Misterioso ou mal consiga localizar na história de Naomi, a velha com mais de 200 anos (de Sem Fim à Vista) a mesma força contestatória que, como um rastilho de pólvora, percorre os outros textos. Mas os insignificantes tropeços destas Catástrofes não permitem ironias fáceis com o título.

Naturalmente – e com muita coerência – a longa viagem pelos horrores contemporâneos feita por Patricia Highsmith termina numa gigantesca contaminação nuclear. Fim previsível para ficções que brincam, o tempo todo, com o apocalíptico. No final do livro, com a força gravitacional abalada pelas explosões, um enlouquecido planeta Terra gira pelo universo à mercê de ventos radioativos, “a última das pragas”. Os 10 contos de Patricia Highsmith são pura dinamite. Loucuras perfeitamente lógicas não só na mente privilegiada desta autora de 18 romances fascinantes, mas também na de qualquer pessoa razoavelmente informada sobre o que acontece atualmente no planeta.

                                  Jornal do Brasil – Idéias, 13 de maio de 1989

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