quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Duas ou três coisas sobre os anos 80

Foto de Juca Martins

Não sei de onde veio essa mania de dividir o tempo em décadas. Como ele se tornasse mais compreensível e suportável assim organizadinho, disposto em prateleiras. Penso então que a gente quase sempre dá nome às coisas para perder o medo delas. Não sei se conseguimos. Mas sei que se eu falar anos 40 ou 50 ou 60 ou 70, imediatamente você monta uma colagem-painel na cabeça, onde cabem de Humphrey Bogart a Martha Rocha, de Crush a Aída Curi, Patricia Hearst e Sid Vicious, Chevrolet Impala e flower-power. Arbitrária ou não, a divisão funciona. Pelo menos para dar uma certa ilusão de disciplina ao caos.

Mas se eu falar anos-80, você pensa o quê? Tenho pensado duas ou três coisas sobre isso. Com a autoridade talvez apenas de estar dentro deles, em pleno centro vertiginoso e assustador da exata metade deles (junho, 85), perdido entre os 10 milhões de habitantes desta cada vez mais dura Sampa. E se adjetivo “vertiginoso & assustador” já estou dizendo senão três, pelo menos duas coisas sobre este tempo. Sinto muito: conto só com o que sinto e os meus sentidos captam.

Anda tudo muito triste. Engolimos a negação das diretas, aceitamos a meia-sola Tancredo Neves, devoramos a orgia fúnebre via Rede Globo. Órfãos, caímos nos braços de José Sarney. Que não escolhemos, mas tudo bem, cara: trata-se da “Nova República” anunciada pelas centenas de pombos que Fafá de Belém soltou por aí. Uma mágica: Fafá solta a pomba e, plim-plim!, a Nova República cai do céu como um maná, solucionando as secas, enchentes, inflação, fome, desemprego e solidão. Só que não aconteceu nada. Não só em relação a isso, mas a muito mais, tenho me perguntado assim: a face dos anos-80 não estará sendo esse indisfarçável furo na cartola de onde deveria ter saído um coelho?

Não quero falar de Podres Poderes. Há coisas mais graves no ar. São Paulo atualmente é uma cidade tomada pela paranoia do Aids. Pelo menos na faixa de gente-como-a-gente: essa parcela mínima e privilegiada da população que não só come e mora (coisa rara), como ainda por cima ainda lê, vai ao cinema, essas coisas. Conheço pessoas que não se tocam mais. O que é que se faz quando aquilo que era possibilidade de prazer – o toque, o beijo, o mergulho no corpo alheio capaz de nos livrar da sensação de finitude e incomunicabilidade – começa a se tornar possibilidade de horror? Quando o amor vira risco de contaminação. Pouco importa se entre homens e mulheres, entre homens e homens ou mulheres e mulheres. Os médicos acham importante desvincular a ideia da Aids da homossexualidade, sabia? E pouco importa também não saber ao certo de onde veio o vírus maldito. As hipóteses não atenuam o fato: a coisa existe. E mata. Pior ainda: estimula a níveis dementes o preconceito contra a mais castigada das minorias. Há qualquer coisa de nazismo no ar. Qualquer coisa de fogueiras medievais para queimar os feiticeiros. Lenha é que não falta.

Então, para nos distrairmos, há o pós. Pós-punk, pós-new wave, pós-moderno, pós-tudo, pós-pós. E há o new: new catolicismo, new-jovem-guarda, new puritanismo. Ninguém falou ainda no pré. Pré-qualquer-coisa. Anos-80 como pré cara a cara com a nossa perdição de micróbios doentes na costa frágil de um planetinha insignificante? Anda, sim, tudo muito triste. Tudo foi questionado, experimentado, negado, superado: a moda caiu de moda. O vazio e a involução tornam-se dolorosamente nítidos se a gente colocar lado a lado, por exemplo e ao acaso, Beatles e Menudos. Embora eu até possa concordar que a abobrinha seja uma saudável saída para the horror... the horror... Os fins de semana paulistanos têm sido pródigos em abobrinhas para os mais variados gostos, de amantes profissionais a rapazes com problemas por usarem óculos. Mas a gente não é hiena, certo?


Mas a lesão mais feia, mais feia que a ferida na perna do mendigo da esquina aqui de casa, corroendo por trás dos modelinhos Company ou Fiorucci é essa medonha suspeita de que de tanto pestear a natureza, o homem finalmente conseguiu tornar-se, ele mesmo, a própria peste. Daí, eu também ando muito triste. E sem entender quase nada.

                                 Revista Domingo, Jornal do Brasil, 2 de junho de 1985
Atenção: A coluna de Caio F. no Caderno 2 do Estadão começou em 1986. Essa crônica pro JB é de antes disso

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