quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Os irmãos, juntos para sempre




Cartas a Théo é um clássico. Muito circulou lá pelos anos 60, em edições em inglês, francês e espanhol ou “português” de Portugal, tendo na capa a reprodução daquele quadro de Van Gogh – com a cama estreita e a cadeira de palha. Mas só este ano a editora L&PM lançou o livro (300 páginas).

Theodore Van Gogh – o Théo do título – era o irmão quatro anos mais moço de Vincent, numa família de seis filhos. E foi a ele, irmão, amigo, cúmplice e muitas vezes doublé de mecenas, que Vincent escreveu cartas durante toda sua vida. Desde 1873, em Londres, quando tinha apenas 20 anos, até 1890, numa carta escrita pouco antes de tentar o suicídio com um tiro no coração. O tiro atingiu a virilha, mas Van Gogh não resistiu, e morreu a 29 de julho. Nessa última, e tristíssima carta, ele dizia: “... em meu próprio trabalho, arrisco a vida e nele minha razão arruinou-se em parte – mas, pelo quanto eu saiba, você não está entre os mercadores de homens, e você pode tomar partido..”


Théo realmente não era nenhum mercador: ele apenas tinha a intuição (ou consciência?) do gênio do irmão meio louco. Logo após a morte de Vincent, Foi Théo quem organizou uma grande exposição de sua obra. Em vida, Vincent só havia vendido um quadro. Théo ainda muito faria pela memória e pela obra do irmão, mas atacado de paralisia, morreu menos de um ano depois de Vincent, em janeiro de 1891. As cartas só começaram a aparecer, no Mercure de France, em 1893 – e no começo do século, aos poucos, começava a chegar, a consagração do pintor dos amarelos desesperados.

Túmulo de Vincent e Théo Van Gogh
As cartas de Vincent Van Gogh ao irmão Théo documentam toda uma vida de luta, de dor – e também uma relação que ultrapassou os limites do afeto familiar ou da solidariedade. Enquanto Théo casava, à procura de uma vida mais “arrumada”, Vincent despedaçava-se em bebedeiras, arrancando a própria orelha, às voltas com terríveis problemas econômicos e psicológicos. Como se fosse o alter-ego do outro: o equilíbrio de Théo, a loucura de Vincent.

Referências à complicada relação em Gaughin, ao processo de criação, dúvidas e inquietações – tudo que se passava na mente e na vida do pintor ficou documentado nos 17 anos que esta correspondência cobre. Uma cronologia detalhada no fim do livro avança até mais de meio século depois da morte dos dois: quando o nome de ambos já estava ligado para sempre. Seja nestas cartas, seja no cemitério de Auvers-sur-Oise, onde repousam juntos. E onde – quem sabe? – talvez exista algum girassol de ouro muito próximo do túmulo dos dois irmãos.
                           
                           OESP – Caderno 2, Quinta-feira, 18 de dezembro de 1986 

Para ler um trecho de Cartas a Théo no site da L&PM:

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Que mal faz moça bonita?



Lucia Peterle:  
Foi Gilberto Braga quem me viciou em telenovela. E Adalgisa Colombo quem me viciou em concurso de miss. Mas o que tem a ver? Bem, outro dia as duas coisas se juntaram num capítulo de Anos Dourados. Durante um chá, Tania Scher comentava que a recém-eleita Miss Botafogo levava muito jeito de conquistar o Miss Distrito Federal. Era de Adalgisa que ela falava. Delícia! Vocês podem até duvidar, mas me formei no ginásio com uma Miss Mundo. Uma futura Miss Mundo, claro. Naquele tempo, nos interiores brabos do Rio Grande do Sul, Lucia Peterle não passava de uma moça alta demais para seus 15 anos, com um pé enorme e aparelho nos dentes. Mudou-se para o Rio, virou Miss Guanabara, terceira Miss Brasil e Miss Mundo, em 1971.


Sentava perto de mim, era ótima aluna e – como éramos os dois compridíssimos – dançávamos muito twist. Mas antes de Lucia, eu já curtia o Miss Brasil. Começava a chegar junho, meu pai trazia toda tarde o Diário de Notícias e, às sextas, O Cruzeiro. Chegado o dia, tinha permissão para ficar na sala ouvindo o concurso pelo rádio – um rádio enorme, do tamanho de uma mesa. Frio de rachar, eu com um caderninho, anotando as medidas das moças e as minhas candidatas. Quase sempre acertava. Minha mãe tinha estranhas opiniões:  achava Adalgisa, por exemplo, muito solta. Ela gostava de Teresinha Morango, com seu ar de “família”. Concordávamos com Marta Rocha: luxo. Só que eu de repente caía em fixações malucas: enlouqueci por Denise da Rocha Almeida. Desclassificada no Miss Guanabara 63, voltou enxutérrima em 64, concorrendo por Brasília. Perdeu para Ieda Maria Vargas. Gaúcha, naturalmente. Denise deu escândalo, ameaçou impugnar o resultado. Garotinho, eu já tinha um fraco por bandidas... Dizem agora que o concurso perdeu a graça. Fico pensando coisas. Primeiro, que um certo tipo de feminismo tira muito o prazer da gente:  que mal faz moça bonita? E será que não foi a TV quem roubou muito daquela graça? Mil vezes mais estimulante você ouvir pelo rádio e imaginar, só imaginar. Ou será que tudo não perdeu um pouco a graça nestes tempos de Chernobyl? Quanto a mim, continuo achando miss um grande barato. Dá a ilusão de que tudo se recompõe, e tudo volta a ser meio ingênuo. E bonito. Hoje à noite vou estar outra vez firme, torcendo pela linda gaúcha Deise.

                 OESP – Caderno 2, Sábado, 17 de maio de 1986

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Aquilo sim é que era festa



Festa que faz sucesso em 85, tem que ter pela menos uma tentativa de suicídio, uma overdose, meia dúzia de traições, alguns tapas na cara e muitos escândalos.

Sempre quando pinta um tema assim geral para escrever, corro ao Aurelião tirar informações. Desta vez, foi lá que encontrei: “Festa. S. F. 1. Reunião alegre para fim de divertimento.” Aí parei e lembrei de um conto de Katherine Mansfield. Bliss (traduzido por Érico Veríssimo como Felicidade, mas talvez mais próximo da tradução de Ana Cristina Cesar: Êxtase), em que a personagem dá uma festa e, no final. surpreende o marido beijando uma de suas melhores amigas. A reunião-alegre-para- fim-de-divertimento desaba bruscamente.  Lembrei também daquela  festa de O Grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, que acaba num grande desastre. Moral da história: as festas, como os tiros, às vezes podem sair pela culatra... Bem, fui em frente no dicionário. E encontrei festança, festão, festeiro, festejo e até festarola, que achei lindo e não tem nada demais – uma festa como as outras. Mas na verdade, fui pensando, é que as festas não são mais como antigamente. Até ai, nada de novo: nada é mais como antigamente. Tenho um amigo que diz que festa, para ser considerada um sucesso, em 85, tem que ter pelo menos uma tentativa de suicídio, uma overdose, duas ou três separações-lancinantes, meia dúzia de traições, outra de comas alcoólicas, alguns tapas na cara e vários escândalos. Reunião alegre? Para fim de divertimento? Bom, cada um se diverte como pode. E talvez diversão – como aquela famosa definição de conto de Mário de Andrade – seja tudo aquilo que chamamos de divertido.

Pode ser. Venho de outros tempos. Tão remotos que, outro dia, dando uma palestra para adolescentes (quando me convidam, vou sempre: acho uma festa), perguntaram a minha idade e, quando falei bem claro trinta e seis, ouvi um ooooooh! de choque generalizado. Que traduzi por “nossa-como- esse-cara-é-velho”. Pois é. Então, minhas memórias mais distantes de festas remontam aos distantíssimos anos 50. E era outro papo. Lá, sim, no interior do Rio Grande do Sul, acredito que tivesse mesmo esse sentido de alegria & divertimento. Minha mãe era uma festeira exímia. Sabidíssima, ela. Como todo ano fazia parte da lista das 10 mais elegantes (sempre tirava o segundo lugar, só perdendo para uma certa Dona Marina Plada, ue ela odiava com todas as forças, embora jurasse ser  superior-a-essas-coisas), dar festas era um dos jeitos que ela tinha de angariar votos. Explico: para fazer a lista, o cronista social entrevistava todas as senhoras da cidade e, da votação, saiam as tais 10 mais. Democrático. não?

Pois Dona Nair Abreu tinha seu trunfo: uma quituteira fabulosa e exclusiva, a demolidora Tia Piba. Solteirona e feíssima, era prima de meu pai. Doceira de mil talentos, além de todos os cursos, hoje compreendo, seu grande segredo era jogar todo seu afeto de solitária nos doces que fazia. Não sei de onde tiraram o apelido de Piba – esquisito, mas bem menos que o nome real dela: Eponina. Além dos talentos culinários, Tia Piba contava também com um par de inesquecíveis olhos verdes, frequentemente marejados de lágrimas quando ouvia, principalmente, Gregório Barrios e Lucho Gatica. Ou Anísio Silva. Costumava cantar Quero Beijar-te as Mãos (quem lembra?) enquanto preparava seus quitutes.

Tia Piba se saía bem com os salgadinhos. Mas o forte dela eram mesmo os doces. Foi ela quem lançou na cidade umas japonesinhas absurdas, de cabelo feito com uma ameixa em passa, daquelas pretas grandonas, que ela abria numa das pontas. Depois, requinte dos requintes, com um pincel tão fininho que parecia ter um pelo só – e, lógico, era o único da cidade – pintava os olhos, o nariz e a boca de uma por uma. Dezenas de japonesinhas. Tia Piba também foi a lançadora dos doces caramelados, que eu nunca fui muito chegado – doces demais e complicados para fazer: a calda dependia de um certo ponto, que dependia do tempo, não podia estar muito úmido, senão “desandava” e não tinha jeito.

Uma festa, em casa – havia várias por ano, uma para cada filho, e éramos cinco, sem falar na do pai e na da mãe – começava vários dias antes. Tia Piba simplesmente mudava lá pra casa. Contratava uma ajudante, e nós ficávamos o dia inteiro atazanando as duas. Naquele tempo, raspas e restos realmente Interessavam. Os das panelas de Tia Piba, pelo menos, eram inesquecíveis. Ela só não gostava que comessem os doces prontos: contava um por um antes de dormir e, na manha seguinte, recontava. Rolavam as maiores cenas se faltava um. As costureiras da cidade também ficavam na maior agitação: todo mundo mandava fazer roupa nova. E ai de quem pintasse na festa com um vestido já manjado. Ficava falada. Ninguém indicava o nome dela para a lista das 10 mais. A própria Tia Piba aparecia radiosa. Lembro de um vestido dela todo justo até quase o joelho, depois abrindo num enorme babado de tule roxo. Saltos altos vermelhos. Nunca mais vi ninguém tão elegante.

É que, naquele tempo, não só havia roupa de festa como havia também um estado-de-espírito-de-festa. Eu ficava muito impressionado porque todo mundo mudava o jeito de falar no dia da festa. Parecia filme. Era uma overdose de delicadezas tipo por- favor-com-licençamuito-obrigado. Tia Piba: consagradíssima, às vezes se excedendo um pouco nas doses do indescritível ponche de frutas que minha mãe preparava com champanha, guaraná e não sei mais quê. Quando a noite avançava, as crianças eram mandadas para a cama. Mas sempre tinha um jeito de espiar: a festa virava baile. Afastavam mesas e cadeiras: rolavam altos tangos. Namoros começavam. Deviam terminar também, mas lembro mais dos que começavam. Todo mundo saía com um pratinho de doces para quem não tinha podido vir. A casa custava a voltar ao normal, as sobras da festa na geladeira. Até a próxima festa.

E era isso ai, já faz tempo. Por isso que agora fico um pouco chocado com as festas que a gente vai e, na entrada, já pedem dinheiro para comprar bebida. Sem falar numas portas de quarto fechadas que abrem para pouca gente, e sempre saem umas pessoas lá de dentro fungando ou com os olhos vermelhos... Eu, hein? Ainda tenho saudade daquelas Japonesinhas de negríssimos e deliciosos cabelos de ameixa. Onde andarão? Ou: onde andará o jeito mais leve que a vida teve, um dia?

                                         Revista Around, Junho de 1985
                                         *Gracias pela lembrança, Lara!


domingo, 9 de setembro de 2012

Por telepatia





                                               A Bela e a Fera, de Clarice Lispector

Para quem aprendeu a amar Clarice Lispector, este livro é uma verdadeira dádiva, além de documento importante para os estudiosos de sua obra. São oito contos inéditos, de um período que abrange 37 anos de ininterrupto, profundo e sofrido trabalho de criação literária. Os seis primeiros foram escritos entre 1940 e 1941, quando a autora tinha apenas 14 ou 15 anos* – antes, portanto, de sua estreia com o romance Perto do Coração Selvagem, em 1944. Paulo Gurgel Valente, filho de Clarice, organizou esses originais, enquanto Olga Borelli (que já havia coordenado o póstumo Um Sopro de Vida) acrescentou os dois últimos contos escritos por Clarice, pouco antes de sua morte, em 1977.

Os contos adolescentes de Clarice pouco têm de adolescentes. Já se encontram, ali, alguns dos elementos dos vários livros posteriores: o mergulho psicológico, a presença da morte, o choque entre as realidades objetivas e subjetivas, a solidão e a incomunicabilidade humanas, a tentativa de penetração e desvendamento de camadas escondidas da alma – tudo isso está presente nestas seis peças que, quase espantosamente, podem ser lidas não apenas com curiosidade, mas com autêntico prazer.

No rapaz suicida (em História Interrompida), na adolescente desorientada que procura a consultoria sentimental de uma revista (Gertrudes Pede um Conselho), ou na mulher casada que foge do marido para ligar-se a outro homem (na pequena e densa novela Obsessão), podem ser localizadas as sementes das mesmas personagens que viriam a habitar seus livros futuros. Com a diferença que, aqui, Clarice ainda se preocupa com a “história”, que foi pacientemente desestruturando, até chegar em obras como A Paixão Segundo G.H. ou Água Viva.

Já em 1941, ela saia-se com ousadas inovações formais, como os dois pontos que concluem Mais Dois Bêbados. Cerca de trinta anos mais tarde, intrigaria os críticos com a simples vírgula que iniciava Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. E aos 14 anos era suficientemente lúcida e bem humorada para fazer ironias como esta: “No entanto, para quem leu um pouco e pensou bastante nas noites de insônia, é relativamente fácil dizer qualquer coisa que pareça profunda”.

CRISTALINA – A ironia é a marca principal dos dois últimos textos: Um Dia a Menos e A Bela e a Fera. No primeiro, uma virgem balzaquiana suicida-se quase por acaso, ao descobrir distraidamente a própria individualidade. No segundo, que lembra o sarcástico humor social de A Hora da Estrela, Clarice narra o patético e hilariante encontro entre uma grã-fina e um mendigo. “Justiça social” são as palavras que ocorrem vagamente à mulher, enquanto seus valores desabam e ela se descobre, também, uma mendiga: “Nunca pedi esmola, mas mendigo o amor de meu marido que tem duas amantes, mendigo pelo amor de Deus que me achem bonita, alegre e aceitável, e minha roupa de alma está maltrapilha”.

Clarice não gostava que os leitores fizessem esforço para lê-la. Não se considerava um “escritor racional”. Preferia estabelecer uma espécie de telepatia com o leitor, e o livro então lia-se como que por si próprio. Para quem a considera, ainda, uma escritora difícil, hermética, talvez A Bela e a Fera seja o meio mais fácil de estabelecer essa comunicação e entrar em contato com um universo onde é dito o indizível da sensibilidade humana. Nele, Clarice está mais cristalina do que nunca. E tão misteriosa e indefinível como sempre – “pura e cruel” como a luz do sol que descreve num conto escrito há quase quarenta anos.

A volta de Clarice, ainda que póstuma, reascende a esperança de que, dentro da literatura latino-americana, existia uma autêntica e expressiva voz brasileira. Europeia, requintada, minuciosa e misteriosa, Clarice permanece como uma das manifestações mais intensas do escritor nacional. E A Bela e a Fera adquire nova importância, quando lança raios de luz sobre todas as outras obras de Clarice, de A Maçã no Escuro a Um Sopro de Vida. Escrever, para Clarice Lispector, era um ato confundido com o próprio inventar da vida de cada dia. No campo da prosa, a escritora consegue aproximar-se, em termos internacionais, da elaboração de uma Marguerite Yourcenar, a autora de A Obra no Escuro. No campo nacional, é provável que Clarice seja o Carlos Drummond de Andrade do romance brasileiro. Como Drummond, ela jamais escrevia por vaidade, por ter uma “mensagem” a transmitir ou por desejar construir um objeto perfeito. Clarice escrevia como quem compõe música: escutando o ritmo do mundo, obrigada a vibrar junto com ele.
                                                         
                                                                Veja, 9 de janeiro de 1980

Nota: "A verdade também é que Clarice era deliberadamente misteriosa. Apagava rastros, diluía pistas. Ninguém sabe ao certo o ano de seu nascimento, na Ucrânia. Ela sempre disfarçava, mudava de assunto, confundia": escreveu Caio F. em Na Trilha dos Mistérios de Clarice http://caiofcaio.blogspot.com.br/2010/08/na-trilha-dos-misterios-de-clarice.html
A idade de Clarice Lispector permaneceu por anos um mistério. Hoje, sabe-se que ela nasceu em 1920 e, portanto, tinha 20 ou 21 anos “entre 1940 e 1941” quando escreveu os contos que Caio F. cita no início.