sexta-feira, 15 de junho de 2012

Anjos da barra pesada



                                         Uma viagem, um show, um amigo, 
                                          um filme: aqui e lá, perguntas 
                                          e respostas ainda são as mesmas

Semana passada fui ao Rio. Estava exausto, sem energia. Tempos atrás, quando você andava assim (exausto, sem energia), ia ao Rio. Costumava dar certo. Desta vez, não deu. Chovia, não tinha sol. Pior, e ainda mais insidioso que isso, havia pelo ar esse mesmo tipo de medo e desamparo que deixam ainda mais cinza o ar de São Paulo. O que está havendo com esse país? – continuei a perguntar lá, como pergunto aqui. E todos respondiam, lá, o mesmo que respondem aqui: dengue, meningite, Aids, caos econômico, falta de amor, falta de esperança, falta de futuro.

Mas insisti. Umas noites, uns bares. Fora o belo e imcompreensível Electra com Creta, de Gerald Thomas, o melhor – ou pelo menos o mais vital, o mais cheio de pique – vinha de São Paulo mesmo: Claudia Wonder e a banda Jardim das Delícias. Não consigo compreender como uma gravadora ainda não contratou Claudia para gravar um álbum chamado Vem Pra Barra Pesada, Meu, título da versão que ela canta de Walk on the Wild Side, de Lou Reed. Assistindo Claudia, de repente, Cazuza. Que vem aí, de disco novo pela Polygram, chama-se Só se For a Dois. Mas tem de esperar até março. A gente espera.

De volta a Sampa, o Rio veio atrás: primeiro com Pedro Paulo de Senna Madureira, atualmente editor da Guanabara (que vai publicar aquela biografia de Virginia Woolf, escrita por Quentin Bell). Pedro Paulo é a mais completa tradução de Vem Pra Barra Pesada, Meu – versão chique. Não conheço quem resista a ele, à conversa brilhante e ao agito: drinques, jantar, dançar, varar a noite, cafés da manhã e, se você facilitar, almoço e drinques e jantar – tudo de novo. Fiquei de cama um dia inteiro. Liguei a secretária eletrônica e deixei dançar trabalho, terapia, matérias, telefonemas. As pessoas perguntavam: que-que houve com você ontem? Como para bom entendedor, meia palavra – você sabe -, respondia cheio de culpa, mas com um argumento imbatível: Pedro Paulo.

Quando saí da cama, querendo me recuperar do Rio, o Rio chegou novamente. Desta vez, pelo correio, na formade Paissandu Hotel, livro de Armando Freitas Filho. Armando é poeta, e do mesmo nível de Rubens Rodrigues Torres Filho e Antonio Fernando de Francheschi. Folheio ao acaso o livro de Armando, encontro os versos que apunhalam: “Um verão passa atrás do outro/ no corredor – ninguém/ está de férias no espelho:/ somos só sentinelas/ até a morte”.

 Fora do poema, o verão continua passando. Para exorcisar o Rio, resolvo ver Anjos do Arrabalde, filme de Carlos Reichenbach. O primeiro filme de Carlão que vi foi Filme Demência, no último festival de Gramado. Não gostei, escrevi falando mal. Ele chegou e perguntou: “Por que você detesta a vanguarda?” (eu também tinha falado mal de Brás Cubas, de Julio Bressane). Falei qualquer coisa como: “Não detesto a vanguarda. Detesto o que é chato”. Era o que achava do filme: chatíssimo.

Mas Anjos do Arrabalde me ganhou. Por trás do perfil de três professoras do subúrbio (com uma Betty Faria sensacional: se Elza Soares é a nossa Tina Turner, Betty Faria é a nossa Jane Fonda), rola um dos retratos do Brasil mais atuais e cruéis que vi nos últimos tempos. Cruel e realista: cheio de violência, miséria, machismo, preconceito. Saí abalado. Na noite abafada de Sampa, aqueles anjos estavam soltos em cada esquina, em cada cara que passava atrás das vidraças dos ônibus em direção aos arrabaldes. Nenhuma alegria, neles ou em mim. E você?

Na noite abafada de Sampa, de volta a Sampa, depois de uma semana tentando negá-la, os jornais exibindo notícias sobre a moratória, continuei a me perguntar: O que está havendo com este país? E todos respondem, com esse interesse trágico que também ando sentindo: Ora, dengue, meningite, Aids, caos econômico, falta de amor, falta de esperança, falta de futuro. Se alguém acrescentar “normal”, eu grito.

                    OESP – Caderno 2, Quarta-feira, 25 de fevereiro de 1987

E aqui, Vem Pra Barra Pesada, a versão de Claudia Wonder para Walk on Wild Side que Caio F. fala

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