quinta-feira, 28 de junho de 2012

Cazuza


Difícil juntar as coisas, nessa estranha síntese de Janis Joplin e Dalva de Oliveira: um garotão agitado, bonito. Sexualidade gauche, berrando poemas de sabor beat, loucamente temperados por pitadas de Lupicínio Rodrigues, Mick Jagger, Rimbaud, Jim Morrison e muito mais. Como é que pode? Eu ouvindo cada vez mais alto Exagerado ou Só as Mães São Felizes, vizinhos putos, e na minha cabeça rolando todas. Quem seria esse poeta com as letras mais poderosas da atual música brasileira? Quem seria esse roqueiro juvenil e profundo, lírico e maldito, chique e marginal, explodindo as fronteiras do bom-gosto estabelecido, às vezes insuportavelmente lúcido? Eu estava intrigado: à beira da paixão. Como com Angela Ro Ro, Billie Holiday, Lou Reed.

Ele existe. vocês sabem. Chama-se Cazuza, 27 anos de Áries com Sagitário, fogo suavizado pela Lua em Libra. Carioquésimo. De beira de praia, Ipanema. Filho único bem mimado, de pai produtor da Philips. Elis Regina pegava ele no colo. Ele espiava escondido os papos do pai com figuras como Tarso de Castro ou o lendário Roniquito (irmão da Scarlet Moon). Curtia os mais velhos: ele é mais velho que sua geração. Dublava sua coleção de discos de rock subido em cima da mesa, a vassoura fingindo de microfone. Menino exagerado, imitava os graves de Maria Bethânia. Estudou 10 anos num colégio de padres, na quarta série ginasial foi expulso: mau elemento, lógico. O pai prometeu um carro se ele passasse no vestibular. Passou, ganhou o carro e ficou só uma semana na faculdade: Comunicações. Cazuza escrevia uns baratos, queria ser jornalista. Ou fotógrafo, ou qualquer coisa. Mil cursos: medo de encarar a vocação maldita. Ou bendita? Bem, depende.

Um dia não fugiu mais. Começou com uma fase super-hiponga, quando foi o que ele chama de “cantor de fogueira”. Juntava, bicho, um pessoal em Mauá, Porto Seguro, Trancoso, aquelas coisas, em volta de uma fogueirinha. Pintava uma flauta, uma viola, e lá vinha Cazuza com sua voz rouca de HoIlywoods e conhaques desfiando um vastíssimo repertório. Rocks, tangos, blues, boIerões e o que mais rolasse. Certos traumas: “Me barraram no coral do colégio. Fiz teste com a mulher do piano e não passei”. Veio uma peça teatral, verão de 80-81: Paraquedas do Coração, montado no Circo do Arpoador. Cazuza era um pouco ator, e cantava. No elenco linha um moço chamado Léo Jaime, que falou assim: “Ó cara, conheço um grupo de rock lá do Rio Comprindo que tá querendo um vocalista. Vai lá. Cazuza foi. Os caras queriam uma garota cantando, mas o som super-heavy deu certo com Cazuza: era o Barão Vermelho. “E o resto”, ele diz, “ah, o resto é História”. Ou história? Dois LPs, a explosão de Beth Balanço, a paixão confessa de Caetano, Gil, Bruna Lombardi e todos nós. Cazuza agora, você sabe, é solo. 

Surpresa: ele adora Clarice Lispector. Tem Água Viva há anos na cabeceira, chegou a fazer uma música que nunca gravou. Paixão por Nelson Rodrigues: “Me comove tanto a piedade que ele tem pelo ser humano”. Piedade, palavra-chave na obra de Cazuza. Que dói, lanha e sangra. Lê mil Jornais por dia, atento ao horror solto por aí na Nova Idade Média. Foi de uma notícia sobre um bando de adolescentes que violava cadáveres num cemitério do interior deMinas que tirou um verso da proibida (e genial) Só As Mães... Barra pesada. Cazuza é proibido. Dark demais? Ou porque fala do real ali da esquina e cá de dentro? Val improviso, necrofilia. E rosas roubadas. Tem uma coisa nova nele crescendo, em direção à outra luz: “Tô me vendo mais social, mais preocupado com o coletivo, saindo daquela coisa reduzida de mesa de bar e dor de corno”. Cazuza é cândido, gentil e abandonado. Tem insônia, fica fazendo fantasias. A mais frequente: “Que tenho uma porção de irmãos e todos dormem no mesmo quarto, em beliches”. Você sente falta de irmãos, Cazuza? Mas você tem tantos, menino. Um beijo.

                                 Revista AROUND, junho de 1985 (Gracias Lara)
                   
                    BREVE MAIS CAZUZA POR CAIO F.: SÓ SE FOR A DOIS

segunda-feira, 18 de junho de 2012

A Vaca e o Hipogrifo

Quintana: Irônico, irreverente


“Um dinossauro na floresta de vidro/ borboleta branca na cidade queimada”: assim o poeta Nei Duclós definiu Mario Quintana, em Outubro.  Com o desajeitamento de quem não conseguiu adaptar-se aos grandes centros (“Onde está o nosso querido chão humano? Tudo é tão desnatural”, queixa-se ele), de dinossauro Mario magicamente transforma-se em borboleta ao fazer anotações como “...e essa tentação de roçar na face e pele perfumada do pêssego, como se ele fosse uma pêssega...”


Mario no Majestic
Aos 71 anos de idade, o poeta gaúcho, ao longo do tempo, se tem mantido fiel à idéia de que “provinciano é sair da província” – embora com o prejuízo de ter sua obra  pouco ou mal conhecida a nível nacional, por problemas de distribuição ou pela distância, voluntária, do eixo Rio-São Paulo. Mas isso talvez pouco lhe importe, já que, na sua opinião “ir de um lugar para outro é o mesmo que mudar de posição um velhop móvel no quarto de sempre”. No quarto do velho Majestic, em Porto Alegre, onde se refugiou há vários anos,  há espaço suficiente para as vacas e, eventualmente, os hipogrifos que povoam seu trabalho, e também para as donas santinhas doceiras de antigamente, as ruas silenciosas que a cidade perdeu, os filmes de vampiros de que se declara admirador, os encontros que imagina, na calada da noite e das páginas adormecidas dos dicionários, entre figuras como Napoleão e Nabucodonosor.

Irreverente – Um mau humor quase sempre muitíssimo bem humorado percorre as anotações poéticas que, há vários anos, ele vem publicando no suplemento literário do Correio do Povo, com o título de Caderno H. Irônico, irreverente, não perdoa monstros sagrados como Mark Twain (para ele, simplesmente “um grosso”), Anatole France – ou os contos de Guy de Maupassant e O. Henry,  que, “em vez de terem desenlace (...) tinham era uma laçadinha, cuidadosamente feita, como nesses presentes de aniversário”. Minicontos, poemas, contos, pequenas observações sobre fatos cotidianos, livros e filmes (ele achou King-Kong “por demais parecido com a Rachel Welch: a mesma boca quadrada, os olhos fundos, os gestos mecânicos”) – e, atrás de cada frase ou verso, uma aversão à seriedade empostada, como à oratória “bramidora e gesticulante”, que considera “uma forma literária de epilepsia”.

Marcado a ferro – Individualista confesso, lírico deslavado, o dinossauro-borboleta se opõe de início à massificação do indivíduo e à desumanização crescente do homem na sociedade tecnológica: o primeiro texto de A Vaca e o Hipogrifo tem como título o número de sua carteira de identidade, marcado a “ferro em brasa como fazem os estanceiros com o seu gado...” Aos entrevistadores profissionais que fazem cobranças sobre a função social da poesia, ele responde que “o velho Karl Marx só escrevia poemas de amor...”

Diz Ezra Pound, em um de seus ensaios, que os grandes escritores não precisam de denúncias. Poeta maior, apesar do vazio desse lugar-comum nos seus mais de dez livros publicados Mario Quintana conquistou o direito de ser exatamente como é: profundamente poético. E, se deseja que seu trabalho seja um alívio, e não um antídoto, para a tecnocracia atual, consegue isso plenamente. O próprio Mario é o maior definidor de sua obra, quando diz que sua poesia pretende ser “como quem se livra de vez em quando de um sapato apertado e passeia descalço sobre a relva”

                                  Veja,  14 dezembro, 1977


sexta-feira, 15 de junho de 2012

Anjos da barra pesada



                                         Uma viagem, um show, um amigo, 
                                          um filme: aqui e lá, perguntas 
                                          e respostas ainda são as mesmas

Semana passada fui ao Rio. Estava exausto, sem energia. Tempos atrás, quando você andava assim (exausto, sem energia), ia ao Rio. Costumava dar certo. Desta vez, não deu. Chovia, não tinha sol. Pior, e ainda mais insidioso que isso, havia pelo ar esse mesmo tipo de medo e desamparo que deixam ainda mais cinza o ar de São Paulo. O que está havendo com esse país? – continuei a perguntar lá, como pergunto aqui. E todos respondiam, lá, o mesmo que respondem aqui: dengue, meningite, Aids, caos econômico, falta de amor, falta de esperança, falta de futuro.

Mas insisti. Umas noites, uns bares. Fora o belo e imcompreensível Electra com Creta, de Gerald Thomas, o melhor – ou pelo menos o mais vital, o mais cheio de pique – vinha de São Paulo mesmo: Claudia Wonder e a banda Jardim das Delícias. Não consigo compreender como uma gravadora ainda não contratou Claudia para gravar um álbum chamado Vem Pra Barra Pesada, Meu, título da versão que ela canta de Walk on the Wild Side, de Lou Reed. Assistindo Claudia, de repente, Cazuza. Que vem aí, de disco novo pela Polygram, chama-se Só se For a Dois. Mas tem de esperar até março. A gente espera.

De volta a Sampa, o Rio veio atrás: primeiro com Pedro Paulo de Senna Madureira, atualmente editor da Guanabara (que vai publicar aquela biografia de Virginia Woolf, escrita por Quentin Bell). Pedro Paulo é a mais completa tradução de Vem Pra Barra Pesada, Meu – versão chique. Não conheço quem resista a ele, à conversa brilhante e ao agito: drinques, jantar, dançar, varar a noite, cafés da manhã e, se você facilitar, almoço e drinques e jantar – tudo de novo. Fiquei de cama um dia inteiro. Liguei a secretária eletrônica e deixei dançar trabalho, terapia, matérias, telefonemas. As pessoas perguntavam: que-que houve com você ontem? Como para bom entendedor, meia palavra – você sabe -, respondia cheio de culpa, mas com um argumento imbatível: Pedro Paulo.

Quando saí da cama, querendo me recuperar do Rio, o Rio chegou novamente. Desta vez, pelo correio, na formade Paissandu Hotel, livro de Armando Freitas Filho. Armando é poeta, e do mesmo nível de Rubens Rodrigues Torres Filho e Antonio Fernando de Francheschi. Folheio ao acaso o livro de Armando, encontro os versos que apunhalam: “Um verão passa atrás do outro/ no corredor – ninguém/ está de férias no espelho:/ somos só sentinelas/ até a morte”.

 Fora do poema, o verão continua passando. Para exorcisar o Rio, resolvo ver Anjos do Arrabalde, filme de Carlos Reichenbach. O primeiro filme de Carlão que vi foi Filme Demência, no último festival de Gramado. Não gostei, escrevi falando mal. Ele chegou e perguntou: “Por que você detesta a vanguarda?” (eu também tinha falado mal de Brás Cubas, de Julio Bressane). Falei qualquer coisa como: “Não detesto a vanguarda. Detesto o que é chato”. Era o que achava do filme: chatíssimo.

Mas Anjos do Arrabalde me ganhou. Por trás do perfil de três professoras do subúrbio (com uma Betty Faria sensacional: se Elza Soares é a nossa Tina Turner, Betty Faria é a nossa Jane Fonda), rola um dos retratos do Brasil mais atuais e cruéis que vi nos últimos tempos. Cruel e realista: cheio de violência, miséria, machismo, preconceito. Saí abalado. Na noite abafada de Sampa, aqueles anjos estavam soltos em cada esquina, em cada cara que passava atrás das vidraças dos ônibus em direção aos arrabaldes. Nenhuma alegria, neles ou em mim. E você?

Na noite abafada de Sampa, de volta a Sampa, depois de uma semana tentando negá-la, os jornais exibindo notícias sobre a moratória, continuei a me perguntar: O que está havendo com este país? E todos respondem, com esse interesse trágico que também ando sentindo: Ora, dengue, meningite, Aids, caos econômico, falta de amor, falta de esperança, falta de futuro. Se alguém acrescentar “normal”, eu grito.

                    OESP – Caderno 2, Quarta-feira, 25 de fevereiro de 1987

E aqui, Vem Pra Barra Pesada, a versão de Claudia Wonder para Walk on Wild Side que Caio F. fala

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Meus amigos são um barato




                            Qualquer semelhança

                            com a realidade não é 

                               mera coincidência

Se a Nara Leão, naquele velho disco, também achava, por que não poderia eu também achá-lo? E se o Nirlando Beirão, tão chique, tem um vizinho yuppie por que não posso ter coisa semelhante em minha vida de retinas fatigadas? E confessá-lo de público – atente na expressão, assim: Meus amigos são um barato. Um baratão. Nos dois sentidos: o do insólito e o do inseto.

Meu amigo Pedro, por exemplo, é um barato no sentido mais tradicional da expressão. Ou não? Fico um pouco confuso e, pensando bem talvez ele seja mesmo uma curtição. O passatempo preferido dele é, nos fins de semana, fazer tremendas vivências em Mauá. Fazer vivência vem a ser o quê? Ora, cara, tá por fora: qualquer coisa pode ser uma vivência: um chá, um baseado, uma caminhada. Importante é que seja em grupo. E que você vá fundo, entendeu? Com direito a nirvanas e iluminações.

Meu amigo Pedro é superfeliz. Detesta quem tem problemas: diz que é baixo-astral. Ele está sempre numa ótima. Detalhe: mora num apartamento de andar inteiro frente para a praia, no Rio. Com os pais, claro – embora tenha 30 anos. Mas tudo bem: para gozar de inteira liberdade, ele pode usar uma coberturazinha absolutamente simples. Outro passatempo dele, embora adore pedir carona, é dirigir o Monza zerinho de mamã. Daqueles que você aperta botões e acontecem coisas tipo fontes luminosas, faróis de laser, show de mulatas, etc. Mas ele, meu amigo Pedro, é singelo e franciscano: anda sempre de camisetinha zurrapa e sandália havaiana. Tem certeza de que, um dia, vamos todos viver em paz – na Era de Aquário. Confirmou isso no último verão passado na Bahia, com uma pá de gente de cabeça feita.

Já minha amiga Kate, um pouco mais moça, despreza meu amigo Pedro. Comenta: “Ele acha que Woodstock foi ontem. E ainda nem desarrumou a mochila”. Ele comenta sobre ela: “quem não dormiu num sleeping bag nem sequer sonhou”. A verdade é que não conheço nada nem ninguém mais moderno (ou pós, nos dois sentidos: o do depois e os das carreiras) que minha amiga Kate. Coberta de negro, cabelo raspado de um lado, vezenquando uma peruca rosa de nylon. Naturalmente que é performática. E faz cursos sen-sa-ci-o-nais: o último foi de vídeo-performance, um arraso. Minha amiga Kate acha tudo muito antigo, mas concede ir ao Satã, dá umas bandas pelo Ritz e não pisa nem morta no Pirandello. Acha que tudo é uma questão de pique e pá e era, sabe como? Fico numas que só.


Meu amigo Betinho é radicalmente o oposto. Faz a linha subir como esforço na vida. Quanto mais esforço, melhor. Quanto mais alto, também. Tem visões futuristas com videocassetes, IBMS elétricas, secretárias eletrônicas louras de olhos azuis, guarda-roupas completos para as quatro estações comprados na Mr. Kitsch. Embora, no fundo, goste mesmo é de Calvin Klein. Ou – em momentos de profunda verdade interior – um sólido Pierre Cardin. Naturalmente, ele veio de baixo. Muito baixo. Tem um problema sério: quando bebe, tem paixão por ouvir Alcione. E por tudo isso, se você for a um restaurante com meu amigo Betinho, pode estar certo que a conta jamais será dividida em partes iguais. Em alto e bom som, ele sempre dirá: “Mas eu não tomei cafezinho!”.

Minha amiga Joana – ex-atriz, ex-cantora, ex-escritora, ex-professora, ex-terapeuta, ex-traficante – há anos largou tudo, pegou uns panos vermelhos, botou uma mala no pescoço, com aquele 3X4 de Rajneesh, e foi embora pra Floripa (leia-se Florianópolis). É conhecida por lá como Bodhira, que em sânscrito quer dizer flor de não lembro o quê. Será – haja – lótus? Quando fui visitá-la, fizemos muita meditação caótica juntos. Super vivência, experimente, se pintar. É um barato.

Enfim, esses são alguns. Tem mais, talvez para uma Parte II. Mas como todo ficcionista, sempre procuro deixar muito claro que qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas – bem, você sabe. E eu adoro meus amigos. Simplesmente adoro.

                                               OESP, Caderno 2 - 8 de abril de 1986