terça-feira, 29 de maio de 2012

Bancarrota Blues


Será que as ruínas dos
cenários foram transpostas
para a alma das pessoas?





Eu tinha jurado: vou ficar neste sofá, me abanando com aquele leque japonês que o Mário Prata me trouxe de Disneyworld, até o verão acabar. Verão, vocês sabem, é uma forma amena de chamar este implacável desequilíbrio ecológico que se abateu sobre nós, e faz pensar em rombos na camada de ozônio, aumento do nível das águas dos mares, degelo das calotas polares... sete pragas, fim dos tempos – melhor não pensar nisso. Melhor ficar mesmo jogado neste sofá, o telefone ao lado, ouvindo Nana Caymmi cantar Bancarrota Blues, Dorothy Parker, Edmund Wilson e Peter Handke bem ao alcance da mão, esperando o verão passar.

Esse era o meu plano. Aí o telefone tocava, vamos aqui, vamos ali, pô, você não sai mais de casa, vamos dançar, vamos jantar, vamos passear, ver as pessoas. Tá bom, vamos. Um pouco em honra da firma (afinal, não é possível permitir que cada janeiro ou fevereiro façam a gente sentir-se com no mínimo 90 anos), um pouco para reapresentar “a noite paulistana” (aspas indispensáveis) à trepidante Marion Frank, que veio de Berlim para dar uma olhadinha na taba – quebrei o juramento. Desliguei o gravador, contei os trocados, esqueci o medo do goleiro diante do pênalti, e fui à luta. Antes não fosse.

A cidade hesitante: real ou artificial? Mundo ou cenário?
A pergunta é banal e previsível, mas também inevitável: o que é que está acontecendo? Primeiro a cidade. Que eu lembre, nunca esteve tão suja, feia e destruída. Parece o título (só o título) daquele lindo livro do Nelson Brissac Peixoto: Cenários em Ruínas. Calçadas em pedaços, lixo nas ruas, um certo ar assim de sudoeste asiático. Não vou falar nos preços: a esta altura, você já deve ter lido as manchetes de primeira página do jornal. Mas – os preços e feira urbana à parte – e as pessoas? Aqueles cenários arruinados de que fala o Nelson parecem transpostos para o interior das pessoas. Um ano fora, Marion F. se espanta: mas todo mundo só pixa o Brasil e fala em ir embora. Ninguém tem esperanças, ninguém tem amor, ninguém tem saco. Pior: ninguém se fala, ou fala apenas para trocar queixas e desânimos. Fui emergindo daquela anestesia de verão, olhando em volta até ficar quase aterrorizado.

Porque o mais doloroso nisso tudo não é sequer a crise social, mas a crise na alma das pessoas. Fui até a uma festa. Festa agora é esquisito. Antigamente, festa ou dar uma saidinha no fim de semana era sinônimo de namorar um pouco, fazer umas caras, uns charmes. Agora, em plena era da Aids, sexo acabou – mas isso não é o mais terrível. O mais terrível é que acabou também o impulso do olho, do toque. O desejo está bloqueado. Com o bloqueio do desejo, vem junto o bloqueio do sonho, da fantasia, da mera curiosidade. Os impulsos vitais mais básicos estão lesados – Eros algemado -, e o que sobrou no rosto das pessoas pelos bares, pelas festas, pelas ruas, é uma inacreditável tristeza.

Recolho notícias aqui e ali: a atriz (talentosíssima) que abriu uma lanchonete, o bailarino que agora trabalha numa confecção, o jornalista que vai embora pro interior, o músico que virou caixa de banco, a cantora que vai embora pra Portugal (não faz isso, Rita Lee). Com meu terapeuta em férias, fico meio confuso – será que assim, sem assistência técnica, pirei além da conta e é só meu olhar, sozinho e pirado, que está vendo tudo desse jeito? Aí chega uma carta do Ignácio de Loyola Brandão, me tranquiliza: “...a caretice vem dominando tudo, do jovem ao velhusco, ninguém está escapando. E de que forma reagir, protestar contra tudo isso? Ou o tempo das contestações saiu de moda? (...) ausência de planos, vazio, tédio, abandono, falta de projetos, não é isso o que eu quero nem para mim – que tenho 51 anos – nem para meus filhos adolescentes”.

Nem eu, Ignácio, que tenho 39 anos e nem sequer filhos. Mas também não quero ese País destroçado nem para as pessoas que amo, nem para as outras que sequer conheço, e que nunca estiveram tão tristes. Suspiro. Sete da noite, desaba uma chuva de Sudoeste asiático. Volto para meu sofá, ligo o gravador, Nana repete “uma fazenda, um casarão, imensa varanda...” Ah, é preciso ficar mais feliz, urgente. Vou rezar pra chuva parar e sair um arco-íris bem luminoso pra gente fazer três pedidos.

                                        OESP, Caderno 2, 3 de fevereiro de 1988



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