terça-feira, 3 de abril de 2012

um exercício de reconciliação com o humano torto e carente de cada um de nós




Depois de ler estas histórias de Carson McCullers, dificilmente alguém com um mínimo de bom gosto literário poderá dizer que o conto é um gênero maior. Concentradas em suas frases breves, estas peças perseguem – e sempre encontram – aquela característica básica das histórias curtas: um mínimo de palavras, um máximo de intensidade. São construídas de sugestões, reflexos, ambiguidades – para que o leitor complete com sua imaginação aquilo que, no texto, é somente insinuado. Preenchidos os brancos, irrompe o que deveria ser a alma de todo bom conto: a epifania.

Delicada aquarelista de uma linguagem feita de semitons, Carson McCullers publicou este livro em 1951, com apenas 34 anos. Depois de três anos, com outros três livros publicados, estava com o lado esquerdo do corpo paralisado. Até sua morte, em 1967, com 50 anos de idade, usou apenas um dos dedos para escrever à máquina, coisa que só conseguia fazer deitada e com terríveis dores. Quem sabe daí – do ato de criação indissoluvelmente ligado à dor física – ela tirou seu extraordinário poder de compreensão para com as deformidades humanas.

Como noutro escritor americano, John Fante, seu aparentado literário pela ternura – cego no final da vida, com pernas e braços amputados devido a diabetes -, Carson McCullers conquistou em sua obra, composta por cinco livros de ficção e uma peça teatral, aquilo que se poderia chamar de “uma grandeza modesta”. Como Fante, não revolucionou profundamente a linguagem nem traçou vastos painéis, à maneira de outros conterrâneos e contemporâneos seus, como William Faulkner ou Ernest Hemingway (estes, sim, considerados “grandes”, e sem nenhuma modéstia). Talvez não tenha tido tempo suficiente para isso, Sua vida, como sua obra, foi curta.


Filha de um modesto relojoeiro, Carson McCullers nasceu em 1917 em Columbus, Geórgia, sul dos Estados Unidos, uma região até hoje racista e atrasada. As vivências da infância foram o material de seu primeiro romance, The Heart Is a Lonely Hunter (O Coração é um Caçador Solitário, 1940), onde ela retrata a si mesma na figura da adolescente Mick Kelly. Começara a escrevê-lo muito cedo, antes de mudar para Nova York, aos 18 anos, para continuar os estudos de piano. O piano, aliás uma de suas obsessões, volta a aparecer em uma história deste livro – “Wunderkind”, em que uma adolescente confronta-se ao mesmo tempo com as primeiras frustrações e vagos impulsos eróticos.

Adolescentes desajustados – um pouco como em J.D. Salinger –, homens solitários (“O Transeunte”, alcóolatras (“Um Dilema Doméstico”), neuróticos de toda espécie (“O Jóquei” e “Madame Zilenski”), bandidos, aleijados e mal-amados (“A Balada...”) são algumas de suas personagens mais constantes. Sem julgamentos nem proselitismos, mas solidariamente, a ficção de Carson McCullers sempre se colocou ao lado das minorias. Temas e personagens que pareciam grotescos demais em outros autores – como a rude e gigantesca srta. Amélia, apaixonada pelo corcunda Lymon, na história-título do livro –, filtrados pela prosa musical desta escritora, não apenas soam verossímeis mas, o que é mais mágico e inesperado, de alguma forma assemelham-se a nós mesmos. Tratados com extrema doçura, por mais “anormais” ou bizarras que sejam suas personagens, essa empatia jamais é ofensiva ou incômoda. Ao contrário, de certa forma nos sentimos lisonjeados com sua inocente humanidade, enquanto a autora acarinha a nós e a suas pobres craturas com uma linguagem cheia de perdão.

Como em John Fante ou J.D. Salinger, nessa suave cumplicidade com o que poderia ser sórdido ou feio,  mas no texto encantado de Carson McCullers resulta sempre poético, talvez esteja sua maior qualidade. São os pecados (perdoados) de todos nós – a propósito, título em português do filme de John Huston adaptado de seu romance Reflection in a Golden Eye. Feito o velho bêbado do conto quase budista que encerra este livro, em sua vida dura – que incluiu o suicídio do marido James Reaves McCullers, em 1953 – a pequena e frágil Carson também parece ter aprendido a amar, mesmo sem resposta, a todas as coisas: uma árvore, um rochedo, uma nuvem.

Equivocadamente considerada por muitos críticos metidos (e frios) como “uma autora menor”, Carson McCullers recebeu no entanto significativas homenagens de figuras importantes. Depois de Ler The Member of The Wedding, o dramaturgo Tennessee Williams tornou-se seu melhor amigo e declarou no prefácio de Reflections: “...nela, o sentimento de espanto transformou-se naquele sentimento de terror que é a desesperada e negra raiz de tudo o que é significativo na arte moderna, da Guernica de Picasso às caricaturas de Charles Adams”. E Graham Greene escreveu: “A srta. McCullers e talvez o sr. Faulkner são os únicos escritores depois de D.H. Lawrence com uma sensibilidade poética original. Eu prefiro a srta. McCullers ao sr. Faulkner, porque ela escreve com mais clareza, e prefiro ela a D.H. Lawrence porque ela não tem mensagem”.


É verdade. Fotos antigas mostram uma quase menina de cabelos muito lisos e pretos, olhos grandes espantados sob a franja. Os lábios apertados parecem conter qualquer comentário sobre a vida. Não julgam, apenas compreendem e lamentam. Talvez fosse isso o que Graham Greene queria dizer ao referir-se à falta de “mensagem”. Carson McCullers não usou a literatura como arma para tentar melhorar o mundo, mas sem dúvida o melhorava muito apenas escrevendo, cheia de perdão pelas monstruosidades que nele habitam. Um perdão bem humorado, como aquela “serena surpresa” que o sr. Book de “Madame Zilensky e o Rei da Finlândia” sente, no final, ao ver o cão Airedale andando de costas....

Traduzir Carson McCullers foi, para mim, como um exercício de reconciliação com o humano torto e carente de cada um de nós. Acredito que lê-la também o será.
                                                       

Nota do tradutor no livro A Balada do Café Triste - Agosto de 1991