quinta-feira, 15 de março de 2012

Processo de Criação - Parte final

Caio F. fotografado por Bob Wolfenson
                      
                               Terceira e última parte da entrevista  do Caio Fernando de Abreu 
                               publicada no livro Processo de Criação, de Darlene Dalto
                               (Editora Marco Zero, 1993). 



Fale mais sobre Morangos Mofados.
Morangos vendeu muito bem, teve críticas boas, ganhou muito espaço. Mas aí aconteceram duas coisas: o Luis Schwarcz, que trabalhava na Brasiliense, saiu, montou a Companhia das Letras e publicou o meu livro Os Dragões Não Conhecem o Paraíso. E pela primeira vez me deu um bom adiantamento, quer dizer, o Luis profissionalizou a coisa no país, ele me pagou para escrever Dulce Veiga e também me paga mensalmente por esse novo livro em que estou trabalhando e assim ficou mais fácil. Ao mesmo tempo, assinei um contrato com uma agente literária chamada Ray-Gude Mertin, uma senhora alemã, que mora perto de Frankfurt. Ela começou a vender os meus textos no exterior, estou em várias antologias. Dragões ela vendeu para a Inglaterra e França e Dulce Veiga para a França, Itália, Alemanha e Holanda. Eu vivo com o mínimo, não tenho ambições materiais.


Agora você é dono do seu tempo, como é que as idéias surgem?
Vou ao cinema quase todos os dias. Cinema é super “inspirador”. Por exemplo, Dulce Veiga. Você conhece um filme do Bruno Barreto chamado A Estrela Sobe, adaptado do romance de Marques Rabelo?

Sim, com a Betty Faria. 
Nesse filme a Odete Lara faz uma cantora chamada Dulce Veiga. Eu me apropriei daquela personagem e criei uma outra história. Agora para o meu livro novo, me propus uma coisa nova também. Nos Dragões tem um conto chamado Sapatinhos Vermelhos, que é uma reescritura da história infantil do Andersen. Eu peguei 12 histórias do Andersen e resolvi fazer versões para adultos.


Já tem título?

Chama-se Malditas Fadas.



Eu gosto muito dos seus títulos. Como você os escolhe?
Não sei, eles nascem. E eu ando com tanto medo de escrever.

Por quê?

Por causa dessa desorganização, não parei de viajar nos últimos anos. Mas isso é uma coisa transitória.



É uma coisa sazonal?

Não sei. É que ficam várias coisas cruzadas que eu acho que são esterilizantes. Eu sou super informado, leio vários jornais, vejo os noticiários de TV, sou meio viciado nisso. E se você para para contemplar o planeta e o país nesse momento, isso dá enquanto ficcionista uma sensação de inutilidade enorme. Você fica pensando: “Meu Deus, o que é que eu posso dizer sobre esse momento econômico, ecológico, humano?”. E isso é um pensamento estéril, não me mobiliza para escrever. Ando meio embaraçado com isso. Mas é uma preocupação que eu acho que é preciso deixar de lado de alguma forma porque ela é produtiva.



O seu estado de humor claramente permeia a sua obra?
Como estudei um pouco de teatro, escrevo também seguindo o método Stanislavski, eu incorporo a personagem. Se a personagem é um depressivo ou suicida eu vou ficar um pouco assim durante todo o tempo em que estiver lidando com aquela personagem. Problemas matérias também interferem, você ter que pagar o aluguel, contas. Acho que o tempo da criação deve ser sempre um tempo de esquecimento. Como uma realidade paralela sobre a material à qual você possa se entregar sem a preocupação de “Meu Deus tenho que arrumar sei lá quanto até amanhã para pagar não sei o quê”. Isso é esterilizante. O momento da criação é como se fosse um mezanino da realidade. (risos).

Anos 60, 70. Você chegou a lidar com drogas com o objetivo de experimentar para criar? Você falou que era muito curioso?
Quando saí do sitio da Hilda Hilst, morei no Rio de Janeiro um tempo, trabalhei na Manchete, foi quando escrevi O Ovo Apunhalado. Eu morava em Santa Tereza com uma porção de gente e muitas coisas do Ovo Apunhalado escrevi com maconha, tomei ácido, anfetamina. A gente fazia muito coquetel de droga. A respeito de drogas, o Antonio Bivar, grande escritor e dramaturgo, falou uma vez, em uma entrevista, para não se tomar a droga como um fim em si, para ficar muito louco, mas para trazer à tona uma coisa que estava meio escondida na sua cabeça.

Relacione alguns exemplos da sua obra sob efeito de alguma droga.
No Ovo Apunhalado tem um conto chamado Eles, que é uma história meio ficção científica que eu não consigo... Geralmente eu lembro do dia, do lugar onde escrevi e essa história não lembro de onde veio. Depois fiquei dois anos fora, um pouco em Estocolmo, em Londres e aí com um bando de gente tomando muita droga.

Você chegou a tomar drogas sozinho, pensando em criar?
Eu tomava a droga com uma turma. Ia para casa sozinho e escrevia. Era uma coisa sempre solitária. Uma época em Londres eu posava para Belas Artes, escultura, pintura, e levava os meus caderninhos e nos intervalos, de 40 em 40 minutos, ficava escrevendo.

Você escrevia drogado? E depois que o efeito passava, a história dava uma reviravolta? Como era?Aconteceu de escrever coisas que eu achava ótimas e depois, quando relia de cara limpa, via que era uma banalidade. Ou escrevia dez laudas meio louco e no dia seguinte pegava umas quatro ou cinco frases aproveitáveis. Às vezes era uma escrita automática que deixava vir à tona uma pequena porção que era interessante. Hoje sou a pessoa mais careta do mundo. E detesto drogas.


Você usa computador?Não, direto à máquina. Estou louco por um computador, é uma coisa que preciso desesperadamente. Estive me informando de preços e preciso que meus livros vendam muito na Europa.


Eu gostaria que você falasse sobre a relação que existe, se é que existe, entre a sua obra e a sua opção sexual.
Claro. Eu nunca pensei sobre isso, mas acho que a sexualidade é básica, ela está em tudo o que você faz. Não sei dizer... Deve vir misturado, sim, mas não sei dizer de que maneira. Ultimamente, com toda essa história de Aids, o que eu tenho escrito não tem sexo. Bom, a minha vida pessoal também não... É uma coisa muito estranha. A última coisa que escrevi é uma versão de A Pequena Sereia, do Andersen, a sereia se apaixona por um príncipe que ela vê do outro lado da água. Na minha história é uma mulher sem nome que tem um sonho. Ela está debruçada no ombro de um homem, dormindo junto com ele, sem ver direito o rosto porque está muito próximo. Ela acorda completamente apaixonada por esse homem, passam-se os anos e ela continua apaixonada por essa figura que encontrou no sonho. Então eu penso muito que talvez a gente esteja num tempo em que o vírus da Aids deixou isso muito claro. Quer dizer, a procura da total satisfação sexual é um pouco como a procura de Deus, como a procura do conhecimento absoluto. É uma coisa que na sua condição humana você não vai conseguir alcançar. Eu realizei, exercitei todas as fantasias sexuais que tinha. Absolutamente todas. Não tenho nenhuma carência nessa área, nenhuma frustração. Frustrações amorosas, afetivas sim. Sexuais não. Acho que a idade traz isso, você vai chegando num vazio, menos ansioso. Tem o quê por trás disso? E aí não tem nada, tem a satisfação do corpo, só. Fica faltando Deus, quando você toma um porre, quando come demais, qualquer coisa, fica faltando. Que é da nossa condição, a carência. Nós nascemos, vamos morrer, habitamos uma poeirinha no infinito e isso dá uma sede enorme de alguma coisa que vem depois, de alguma coisa maior, que a gente chama de Deus, chama de amor, chama de orgasmo, chama de mil coisas.

Dor e prazer na criação, como isso se dá com você?
Olha, as notícias são persecutórias. Você fica com uma história, com uma imagem na cabeça durante muito tempo. Eu fico anos, às vezes. E essa é uma fase angustiante porque anota uma frase aqui outra ali, sente que a coisa não está pronta. E isso dói. Dói muito sentar a máquina e dizer: “É hoje que eu vou dar forma a esse texto”. Aí você foge, vai ao cinema, ao teatro, vai jantar com alguém e não assume. Até o momento em que tudo se conjuga para que você tenha sobre controle aquela coisa amorfa. Você começa a escrever e as coisas se ligam, os canais se ligam com o invisível e aí vem o prazer de dar forma ao informe. Aí é maravilhoso.

A que você credita esse momento, digamos, mágico?

Acho que o inconsciente está muito envolvido nisso, levou um tempo para que essas informações fossem armazenadas, filtradas e formassem um todo. Mas é um mistério. Eu prefiro pensar que é basicamente um mistério. Não se deve mexer muito nisso senão perde o encanto.



E essa mágica independe do momento que você estiver passando?
Independe. O seu eu individual fica completamente de lado a ponte de você não ter fome, sono, coisas assim. Talvez seja uma parte de sua mente que venha à tona, que fica mais forte, mais nítida.


Você costuma reescrever a sua obra?

Na faculdade eu tinha escrito um romance chamado Limite Branco, a Carmen da Silva tinha me pedido os originais para ver se publicaria no Rio. Esse romance eu reescrevi recentemente, vai sair pela Siciliano.

Como foi reescrever um romance mais de 20 anos depois?

Foi a viagem mais estranha. Esse livro foi escrito em 67, publicado em 70, teve só uma edição. Não modifiquei a técnica dele, tem uma boa estrutura, suponho, mas trabalhei na linguagem. Teve uma hora em que eu não queria terminar o trabalho, levei quase um ano arrastando. Ele era muito inocente, muito ingênuo, e me dava uma sensação um pouco dolorosa de ter perdido muito daquela inocência dos 18 anos, o que é inevitável.

Foi mais difícil terminar do que recomeçar a escrever?
Sem dúvida. Eu escrevia à tarde porque à noite em geral eu fazia uma coisa que faço até hoje, eu procurava locações para o livro. (risos) Como em cinema. Uma personagem anda por uma rua, antes eu fazia aquele trajeto, procurava as casas onde esses personagens deviam morar.

Isso deve facilitar muito na hora de escrever, não?
Fica muito real. É o método do cinema.


Quanto da realidade você permite na sua criação?
Vou dar um exemplo: a primeira história de Os Dragões Não Conhecem o Paraíso se chama Linda, Uma História Horrível. (risos) É o diálogo de um homem de mais ou menos 40 anos com a mãe dele. Ele volta para o interior, a mãe é viúva, o pai morreu há alguns anos. Ela tem uma cachorra sarnenta, velha, meio cega chamada Linda. É um diálogo dos dois, e o leitor percebe que esse homem está com Aids e voltou para morrer na casa da mãe. Isso é uma conclusão que o leitor tira. Pois essa história nasceu de uma fantasia que eu fazia com o meu psicanalista. Eu dizia: “Ai, meu Deus, se eu tiver Aids vou ter que voltar para a casa do meu pai, da minha mãe, não vou poder trabalhar mais...”. Era uma fantasia mórbida, obsessiva, bem obsessiva. E a forma que encontrei de me livrar foi transformando-a em história, em ficção. Quer dizer, esse homem não sou eu, aquela cidade no interior é uma cidade fictícia, aquela mãe não é a minha mãe, mas eu “ficcionalizei” uma obsessão minha que era muito negativa. Muitas vezes uma história nasce disso, de você pegar uma obsessão sua que é perigosa e criar uma ficção. Escrever é sempre um exorcismo, um auto-exorcismo. Por isso nunca gostei da psicanálise mais tradicional. Fui me encontrar mais nos junguianos, nos sonhos, nos símbolos, na astrologia, no I-Ching, no budismo Zen.

Você está com 43. A proximidade dos 50...
Me excita. Eu gosto tanto de velhos. Um dos meus melhores amigos atualmente é o meu pai, que ontem fez 71 anose é super saudável. Acho que as pessoas mais velhas têm uma visão cronológica da vida mais desapaixonada, mais sábia. O Bivar tem 10 anos a mais do que eu e é admirável a maneira como ele lida com a vida, a maneira com que foi se despojando para criar, como dividiu a sua vida, morando atualmente 15 dias em Sâo Paulo e 15 dias em Ribeirão Preto. Acho uma maravilha. Se você for se libertando das suas ansiedades, dos seus desejos, vai poder contemplar o mundo dos humanos com mais isenção, com mais amor. Isso é bom. Você ter um olho mais amplo e mais generoso sobre a realidade, sobre o mundo chamado “real”, que é pura ilusão.


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