sábado, 27 de agosto de 2011

Inútil pranto por Santa Teresa


Conheci Santa Teresa em 1968. E era tão bonita que nem parecia real, mas locação de filme brasileiro de época, com o casario colonial de portas e janelas coloridas feito pintura primitivista, o sobe-desce das ladeiras e o Rio de Janeiro esparramado lá embaixo. Jurei encantado: um dia, ah um dia ainda venho morar aqui.

Cumpri a promessa. Lá por 1971, fui morar numa espécie de minicomunidade hippie com Lima, Lili e Tereza, perto do Morro Silvestre. Nos fundos do apartamento, um abismo de bananeiras, flores tropicais selvagens que ninguém sabe o nome. Vezenquando alguma cobra atravessava a rua, bem natural. E nós tão hippies, mas tão hippies que volta e meia, geralmente nos sábados à tarde, o pintor Luiz Jasmim (onde andará?), que morava ao lado, colocava as caixas de som na janela e a trilha sonora de Hair bem alto, só pra nós. Os acordes de Aquarius ou Let the Sunshine in eram uma declaração de simpatia ao mesmo tempo explícita e delicada. Se éramos felizes? Não sei, éramos jovens. Além disso havia Santa Teresa em volta e aquele exagero de beleza da Baía da Guanabara, que podia ser vista até da janela do banheiro. Nem teve importância que tudo terminasse numa dançada federal. Saímos de lá corridos, feridos, assustados. Normal para a época. Afinal, quem não dançou nos anos 70 nem sequer sonhou.

Mas não me dei por vencido. Em 1982 voltei para morar outra vez em Santa Teresa. Desde vez no lendário hotel do mesmo nome, onde reza a lenda, morou Raul Seixas. Durante quase um ano, enquanto escrevia Triângulo das Águas, me dedicava a longas caminhadas pelas ladeiras de calçadas estreitas, pegando amizade com a população do bairro. Naquele tempo, e nem tanto tempo assim faz, por incrível que pareça as pessoas não tinham medo umas das outras. Violência? Vez por outra um pivete roubando relógio ou corrente de ouro de turista tonto no bondinho, e a história era comentada durante uma semana. Mas tiro, bala perdida, mortes e feridos, isso nunca. Essas coisas não cabiam lá.

Santa Teresa ficava no interior da cidade do Rio de Janeiro. Santa Teresa, qualquer coisa entre Paraty e as cidades coloniais mineiras, era pacífica, preguiçosa, suavemente monótona. Feito uma foto em sépia, aquarela primitiva, vila fora do tempo. À noite dava para sentar no muro caiado de branco, ouvindo as mangas maduras demais se esborracharem no chão, sentindo o perfume de dama-da-noite solto no ar. E quando se descia até o Rio e ficava muito tarde, e os motoristas de táxi recusavam-se a subir, dizendo que os trilhos dos bondes cortavam os pneus, ia-se a pé mesmo, por quebradas estreitas da Glória, por intermináveis escadarias do Cosme Velho. Havia grilos, vaga-lumes, perfumes soltos no ar um pouco mais frio no morro. E as luzes da Guanabara, maravilhosas e perigosas, lá longe. O melhor de Santa Teresa, talvez, era que o Rio de Janeiro era uma coisa que você podia ou não usar, mas estava sempre lá.

Agora acabou. O que leio nos jornais e vejo na TV nas últimas semanas me deixa doente. Ainda mais doente. Santa Teresa sangra, transformada em Sarajevo tropical, em Chechênia, invadida, estuprada. As pessoas abandonam as casas e fogem para qualquer lugar, escondendo o rosto. Balas perdidas cruzam o ar. Não, não sei se é suficiente chorar o que se perdeu e rezar pelo que ficou. Sei que, por conta disso, acabei achando um pouco ridículo FHC todo sorridente ao lado da rainha da Inglaterra e todas essas comemorações do fim da 2ª Guerra, enquanto Santa Teresa agoniza, desamparada e bela, no alto daquele morro. Quem pode fazer alguma coisa que faça. E quem pode?

               OESP – Caderno 2 – Domingo, 14 de maio de 1995

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Diário do Grande Sertão





De certa forma, ajudei a inventar este livro. Explico como. Foi lá por setembro/outubro de 1985. Estava editando a revista Around quando me caiu nas mãos um texto de Bruna: os fragmentos de um diário escrito durante as gravações de Grande Sertão: Veredas. Fiquei encantado com – mais que tudo – o clima do texto, que liguei para ela: “Bruna, tua matéria é uma delícia. Sabe o que eu acho? Que ela daria um livro”.
Ela duvidou. Valeria mesmo a pena, interessaria a alguém? Inisisti. Bruna falou que ia pensar, remexer no material. A cada vez que nos cruzávamos, depois, ou falávamos por telefone, eu cobrava: “E como vai o livro?” Até que ela se decidiu. E mergulhou na reconstituição daqueles papéis, daqueles sertões. Obsessiva, bateu e rebateu originais, procurando essa coisa esquiva – a forma exata. De vez em quando, iluminações. Como as frases do próprio Guimarães Rosa que atravessam o texto – lembrando sempre que esse outro texto, o de Bruna, não existiria sem o de Guimarães. Nem o texto, nem a experiência. Que foi profundamente modificadora – isso vocês vão descobrir à medida que forem lendo. E se espantando com a moça linda e loura, de imagem mimada, às voltas com escorpiões fatais, ou à procura de discretas moitinhas para fazer um xixi rápido. Quem diria – a Bruna Lombardi? Ela mesma, cara... É que só a paixão pode levar à renúncia desses fricotes e comodidades aos quais estamos urbanamente (mal) acostumados. Você vai surpreender aquela moça Bruna, que você imagina envolta em peles, bebericando champanha nas noites paulistanas – já meio tomada por Reinaldo/ Diadorim -, sentindo-se “a mulher mais sofisticada do planeta” por conseguir dormir uma noite numa simples cama de hotel. Por trás da aventura pessoal, a aventura grupal de um bando de técnicos e artistas de TV dispostos a realizar o aparentemente impossível: verter para o vídeo o universo verbal muitas vezes hermético do nosso maior escritor. Eles conseguiram. Bruna também conseguiu.
E conseguiu não só emprestar corpo e vida à torturada Diadorim, mas despir-se de muitas de suas camadas supérfluas para colocar corpo e vida também no texto que, no meio do redemunho, escreveu.
O resultado é este documento sobre duas aventuras: a de toda a equipe que realizou talvez o mais belo seriado da televisão brasileira, e a aventura particular da moça Bruna, transformada em jagunço vingativo. É muito bonito. Vital, vigoroso. Como se, em cada momento da escritura, a autora ouvisse por dentro a voz de seu inspirador Guimarães Rosa, instigando, provocando, enlouquecendo: “Êêêêêêê mandacarú, ôi Diadorim belo feroz. Ah, ele conhecia os caminhares”. Bruna também. Se não os do sertão, pelo menos os de escrever.
    Orelha do livro Diário do Grande Sertão, Bruna  Lombardi. 1986

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Praia do Rosa

 
 Porto Alegre, 22/1/96
    Praia do Rosa
    Príncipe artesão etrusco/ colocou no meu pulso esquerdo/ um bracelete prata pedra rude ágata – esmeralda:/ cor exata do seu olhar e do mar,/ suas costas nos seus olhos.
    Obrigado: falei.
    E quando me ia, olhos baixos, ele disse: “um beijo”. Depois tocou na ferida do meu ombro oposto ao que tocara antes, fechando meu corpo em seta para o infinito.
   Pela primeira vez em dois anos senti tanta mágoa e pena de ser o leproso de Cartago. Não posso dar-lhe Thanatos como se Eros fosse.
  Isso não dói. Seu bracelete é bálsamo na minha pele em frangalhos.               
 
                       Jornal do Brasil – Caderno B – 27 fevereiro 1996