segunda-feira, 16 de maio de 2011

Meu amado Pasolini,


hoje é um dia azul de maio e eu aqui, segunda-feira de manhã, olhando a roseira do pátio cheia de botões, fechei a pasta com a tradução das tuas histórias e fiquei pensando em ti. Estranho,
quando penso em ti, das tuas muitas imagens, me fica sempre uma na cabeça – aquele rosto um pouco endurecido demais, com muitos vincos em torno dos lábios apertados, e um brilho nos olhos. Aquele brilho que têm os olhos das pessoas que viram coisas que outras pessoas não ousaram ver. Lendo essas tuas duas histórias – romances curtos, novelas, confissões de um amor muito pessoal: que importa, afinal, o nome? – além do teu rosto marcado, ficaram muitas coisas na minha cabeça. Antes de mais nada, a culpa que te atormentava por esse amor que chamam de homossexual, e a força do teu impulso em direção ao prazer de repente e sempre cortado pelo proibido de fora ou de dentro de nós. Tão cego esse impulso, e tão violento, que essa proibição que te custou a vida... Mas acho tão bonito teres insistido, e gosto de acompanhar teus passos por essas estradinhas poeirentas do interior da Itália, atrás de meninos fugidios feito pássaros, e o teu coração católico e anárquico chamando de impuros esses atos que não têm nome quando brotam dessa região escondida e funda em nós, onde se passam nossas verdades. E te castigavas, mas não desistias, e do conflito entre o proibido e o sagrado nasciam histórias como essas duas, e teus filmes, teus poemas, teus sonhos. Teu jeito vigoroso e ao mesmo tempo doce de tentar modificar o que nos cerca. Fico pensando depois, enquanto o telefone toca e não atendo, que se existe alguma forma de modificar o mundo e as organizações socias repressoras dentro dele, talvez seja a dos poetas uma das mais eficientes, qdo abrem o coração para, devagar e sofregamente, mostrar aos outros tudo o que se passa dentro dele. É nesse momento que conceitos como moral, certo, errado, bem ou mal deixam de ter sentido. Fica no final de tudo só a vida que flui e reflui sem nome, imensa. Porque nada do que possa se passar no coração humano é vergonhoso. Nada é impuro quando acontece aquele atrevimento mágico de transformar a vida em arte. Penso em ti quando a vida me pesa e as pessoas batizam com nomes sórdidos esses lados escondidos da emoção. E fico sempre mais forte, mesmo sentindo saudade, sem saber que te alcanço aí, nesse outro lado de todas as coisas, para onde um dia também irei. Fica cheio de luz, um beijo do
                                      CAIO FERNANDO ABREU
                                      Sampa, maio de 1984



5 comentários:

  1. Os textos que você consegue sempre me enchem de inspiração, as vezes acho que vou sair flutuando, outras penso que sairei cantando ou ainda, só derramo um lágrima e nada mais.

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  2. obrigada por isso HOJE! cf é sempre apropriado...

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  3. Lindo! E o mais belo é que um texto de resistência, mesmo sendo triste, a resistência se dá e continuará! Assim, era o nosso Caio!!!

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  4. Liindo mesmo. amo todos os textos de Caio...

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