terça-feira, 24 de maio de 2011

Nos trilhos do tempo


  Além dos enganos, pairam os
  poetas que não querem faca
   nem queijo. Preferem a fome

Outro dia, uma amiga se queixou ao telefone: “Tenho 27 anos e descobri que, até agora, tenho me alimentado de migalhas”. Falei qualquer coisa banal & consoladora, como “a vida é assim mesmo, paciência” – e desliguei. Só não desliguei a cabeça: a frase ficou dias dando voltas dentro dela, Até que, não lembro bem como, de algum lugar de dentro de mim veio a resposta que não cheguei a dar à minha amiga: “Mas será que isso que você chama de migalhas não será, afinal, o próprio pão?”
Fiquei todo enredado num pensamento mais ou menos assim: aos 15 anos, você espera um bolo coberto de chocolate, recheado de frutas; aos 25, você até dispensa o recheio de frutas, mas ainda espera a cobertura de chocolate; aos 35 – ah, um pão doce mesmo serve; aos 45, pode ser pão comum, desses de água e sal, desde que fresquinho; aos 55, o mesmo pão, só que não tem muito importância se dor amanhecido – e assim por diante, até chegarmos às migalhas. Que, se você tiver uma boa cabeça, pode receber como se fosse uma daquelas tortas Martha Rocha  (uma fatia para quem lembrar das tortas Martha Rocha, famosas nos anos 50).

A passagem do tempo traz humildade e reduz o apetite? Não afirmo nada, só pergunto, porque não tenho certeza. Talvez por ter andado lendo os dois romances que Doris Lessing esecreveu sob o pseudônimo de Jane Somers (O Diário de Uma Boa Vizinha e Se os Velhos Pudessem), andei pensando também na velhice. Neste jornal não se pode escrever palavrão – mas você já percebeu que muitos jovem dizem velha como se dissessem, desculpem, mulher de vida airada ou ladra? Como se a velhice fosse um crime e uma vergonha.


Os dias passaram, eu pensei em Rita Lee. Não ouvi o disco novo de Rita, não tenho nada a dizer sobre ele. Mas Rita ficou furiosa com uma crítica escrita sobre o disco e, ao que parece, especialmente com uma maldadezinha sobre sua suposta “menopausa criativa”. Fica assim: quem acusa coloca-se na posição de “jovem-por-dentro-de tudo”. Acaba virando um joguinho meio lamentável de bom & mau, mocinho & bandido, inocente & culpado. Por trás de tudo, a suprema ofensa: ser chamado de VELHO.
Então morre Rita Hayworth (maravilhosa Rita, sem a qual Marilyn Monroe talvez não tivesse existido), há anos esquecida. Em todos os arquivos rebuscam-se fotos e trechos de filmes da flamejante Gilda – e fotos da mulher esplêndida de 20, 25 anos, são colocadas lado a lado de fotos da velha horrenda de 60, doente e decadente. O subtexto é: o jovem é belo, o velho é feio. O jovem está perto da vida, o velho está perto da morte. E a velhice, como a morte, é feia e suja. Será?

Enquanto isso, a vida de cada um corre sobre os trilhos do tempo, separadamente mas em direção a um destino igual para todos, e no mesmo ritmo implacável daquele poema de Manuel Bandeira: café-com-pão, café-com-pão. Penso nos velhinhos como Mário Quintana, cheios do poder discreto de conseguir contemplar de longe a juvenil palhaçada nossa de cada dia, à espera desses resplandescentes bolos cobertos de chocolate, recheados de frutas. E que só existem no sonho. No real, são as migalhas.


Rita, a Hayworth, gira no ar sua luva negra e canta: “Put the blame on mame, boy” – porque ela não preparou você para a velhice, eu acrescento. Seguro devagar o novo livro de Adélia Prado, O Pelicano, leio e releio um poema chamado Objeto de Amor (que não posso transcrever aqui: este jornal não publica palavrão), e acho que eu compreendo quando ela diz: “Quanto a mim dou graças/ pelo que agora sei/ e, mais que perdoo, eu amo”. Foi Adélia, mulher do povo, quem afirrnou também num poema mais antigo: “Quarenta anos: não quero a faca nem o queijo/ quero a fome”. Eu também: bem-vindas as migalhas que, se Deus quiser, virão.

                                    OESP - Caderno 2 - 1987

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Meu amado Pasolini,


hoje é um dia azul de maio e eu aqui, segunda-feira de manhã, olhando a roseira do pátio cheia de botões, fechei a pasta com a tradução das tuas histórias e fiquei pensando em ti. Estranho,
quando penso em ti, das tuas muitas imagens, me fica sempre uma na cabeça – aquele rosto um pouco endurecido demais, com muitos vincos em torno dos lábios apertados, e um brilho nos olhos. Aquele brilho que têm os olhos das pessoas que viram coisas que outras pessoas não ousaram ver. Lendo essas tuas duas histórias – romances curtos, novelas, confissões de um amor muito pessoal: que importa, afinal, o nome? – além do teu rosto marcado, ficaram muitas coisas na minha cabeça. Antes de mais nada, a culpa que te atormentava por esse amor que chamam de homossexual, e a força do teu impulso em direção ao prazer de repente e sempre cortado pelo proibido de fora ou de dentro de nós. Tão cego esse impulso, e tão violento, que essa proibição que te custou a vida... Mas acho tão bonito teres insistido, e gosto de acompanhar teus passos por essas estradinhas poeirentas do interior da Itália, atrás de meninos fugidios feito pássaros, e o teu coração católico e anárquico chamando de impuros esses atos que não têm nome quando brotam dessa região escondida e funda em nós, onde se passam nossas verdades. E te castigavas, mas não desistias, e do conflito entre o proibido e o sagrado nasciam histórias como essas duas, e teus filmes, teus poemas, teus sonhos. Teu jeito vigoroso e ao mesmo tempo doce de tentar modificar o que nos cerca. Fico pensando depois, enquanto o telefone toca e não atendo, que se existe alguma forma de modificar o mundo e as organizações socias repressoras dentro dele, talvez seja a dos poetas uma das mais eficientes, qdo abrem o coração para, devagar e sofregamente, mostrar aos outros tudo o que se passa dentro dele. É nesse momento que conceitos como moral, certo, errado, bem ou mal deixam de ter sentido. Fica no final de tudo só a vida que flui e reflui sem nome, imensa. Porque nada do que possa se passar no coração humano é vergonhoso. Nada é impuro quando acontece aquele atrevimento mágico de transformar a vida em arte. Penso em ti quando a vida me pesa e as pessoas batizam com nomes sórdidos esses lados escondidos da emoção. E fico sempre mais forte, mesmo sentindo saudade, sem saber que te alcanço aí, nesse outro lado de todas as coisas, para onde um dia também irei. Fica cheio de luz, um beijo do
                                      CAIO FERNANDO ABREU
                                      Sampa, maio de 1984



terça-feira, 10 de maio de 2011

Saudades da pré-barbarie


Nos anos 70 se escrevia mais carta? E mais ainda nos anos 60, muito mais nos 50, muitíssimo mais nos 40, e assim por diante, para trás, respectivamente. Os 70, além de terem sido a década daquele boom da literatura brasileira, acelerou o tráfico de amizade entre escritores. Havia revistas literárias, novas editoras, feiras, encontros, informações eram trocadas o tempo todo. Por carta. Que não fax nem computador, e telefone não era esse arroz-de-festa de hoje em dia, não. Por carta, criavam-se grandes amizades, confidências eram feitas, havia outra literatura brasileira pulsando através das cartas. Iradas, pungentes, subversivas, solidárias, fatigadas: belamente humanas, enfim. Mais vivas, vezenquando, que os livros.
Todos os escritores naquele período escreveram muitas cartas. Não sei quem mais, além de mim, as terá guardado. As minhas, estou doando para que os fragmentos daquele tempo não se percam. Porque a literatura nasce, principalmente, da luta contra Cronos e o Kaos que nos devoram a cada dia. Proust sabia disso, e nisso centrou a sua obra. Claro, em tempos de internet, talvez toda essa papelada não passe de peça de museu. Mas como escritor, é assim mesmo que frequentemente me sinto hoje em dia: Peça de museu. Melancolia? Nada disso. Foi chiquérrimo ter vivido a pré-barbárie dos anos 70. Quem desfrutou desse luxo, sabe do que estou falando.
              O Globo – Segundo Caderno (capa) 4 de novembro de 1995