sábado, 30 de abril de 2011

A discreta coragem do pastor




Em sua casa no Menino Deus, bairro porto-alegrense onde vive hoje com os pais, depois de ter morado nos últimos anos entre Paris, Londres e São Paulo, o escritor Caio Fernando de Abreu, HIV positivo, costuma acordas às 5:30 para trabalhar no seu laptop, presente de amigos, quando esteve hospitalizado recentemente. Mesmo debilitado, continua escrevendo todos os dias. O autor de Morangos Mofados fala de seu último livro, Ovelhas Negras, e do próximo, Estranhos Estrangeiros, que espera concluir até o final do verão.

Com Ovelhas Negras você nos deu um dos três rebanhos de inéditos que disse possuir. Quando é que saem os outros rebanhos?
Não sei se sairiam. Eu selecionei o que me pareceu melhor. Na orelha eu falo que o que parecia melhor às vezes é o pior, como aquela novela escrita aos 14 anos, A Maldição dos Saint- Marie. O material que ficou para os outros livros tem coisa boas também, mas tem muito trash, muito lixão. E como estou envolvido em outros projetos, isso fica pra depois.
O livro traz um anjo na capa e ainda outros símbolos de religiosidade. São pistas para alguma coisa?
Eu acredito numa grande força que rege o universo, a qual a gente chama de Deus, mas poderia chamar de outra coisa, uma grande energia. Acho que quando cuido do jardim, aqui em casa, eu cuido dos devas da natureza, das fadas, dos gnomos, e aí eles me cuidam também. Não acho que o que eu tenho seja uma doença mortal. A Aids não deve ser supervalorizada, é uma doença crônica e pode ser controlada com os novos medicamentos. Eu tenho Aids, mas um outro tem síndrome do pânico, outro é alcoólatra, outro fuma crack, outro é diabético ou tem colesterol altíssimo. Nesse sentido a Aids é apenas uma metáfora, toda humanidade, de uma maneira ou de outra, está doente. A Terra, planeta Gaia, que é um organismo vivo, também está com o sistema imunológico bombeando.
Desde quando soube que seria escritor?
Desde que eu nasci. Eu subvertia as minhas tias. Acho que todo gaúcho da minha geração tem tias solteironas e as minhas queriam me contar histórias na hora de dormir. Mas eu é que contava as histórias. Minha mãe era professora e eu aprendi a ler muito rápido, a escrever. Aos 6 anos, comecei a escrever e a desenhar histórias e nunca mais parei. Eu sabia que podia e devia escrever. Seria a minha forma de atuar socialmente e de crescer como ser humano. E depois da doença isso ficou ainda mais claro para mim, sem um sentido messiânico. Mas é uma missão, eu devo fazer isso enquanto estou vivo. E é o que eu tenho feito.
E em que projeto você está envolvido agora?
Eu publiquei Dulce Veiga (Onde Andará Dulce Veiga, romance) em 1990. Em seguida, viajei para a Europa, fui lançar Os Dragões (Os Dragões Não Conhecem o Paraíso, contos) na Inglaterra e na França. De 90 a 95 perdi o apartamento em São Paulo, eu não tinha mais casa no Brasil. Ficava em apart-hotel dois, três meses, e voltava à Europa. Começaram a sair lá muitas traduções. E sempre ia com cadernos, onde eu desenvolvia histórias que se passavam no exterior. Consegui terminar uma delas (Bien Loin de Marienbad, publicada na França, inédita no Brasil). O resto foi ficando em fragmentos e eu fui ficando doente. Só agora, cinco anos depois, posso reunir estas histórias, algumas prontas, semi prontas, e dar forma a esse livro que se chamará Estranhos Estrangeiros, quatro novelas que se passam longe do Brasil e muito marcadas pelos horríveis anos Collor.
Você diria que a expressão “escritor de geração” é reducionista?
É reducionista. Quando me dizem que é literatura de geração, parece que estão dizendo: “Olha, isso vai passar, isso é modismo”. Não importa que passe ou não, quando eu morrer não vou me importar. Mas eu acho que ela vai muito além disso, toca em questões atávicas da alma e da condição humana, que é basicamente o espanto, o terror de ter nascido e de estar vivo, sem ensaio prévio, navegando em direção ao ponto da morte. Toda condição humana é inocente, ninguém sabe o que está fazendo aqui. Com a literatura nós queremos nos distrair desse horror o tempo todo..
Mas sua literatura é também centrada nas coisas que você viveu...
Olha, o que eu vivi, num certo sentido, é muito pouco pessoal. Toda uma geração viveu. Então o que eu escrevi não é pessoal, não é autobiográfico, ou é, às vezes, mas na maioria das vezes não é. São coisas que eu vivi, outros companheiros também viveram e eu os vi vivendo. A minha literatura é centrada, como falei antes, no desamparo da condição humana. Eu cito sempre como exemplo o conto À La Deriva, de um autor uruguaio que eu adoro, Horacio Quiroga. É a história de um cara picado por uma serpente venenosa, que sobe o rio Uruguai num barco sem remo, e vai delirando sem remo corredeira afora, envenenado, envenenado, envenenando. A minha literatura é isso.
Você se sente um autor gaúcho naquele sentido do culto à coragem, que Borges e Bioy Casares emprestavam ao homem do pampa?
Eu me sinto totalmente gaúcho. Em Santa Catarina, me sinto em pleno trópico. Sempre fui um estrangeiro em São Paulo e no Rio de Janeiro. Eu voltei há cerca de um mês da minha cidade natal, Santiago, e me senti tão revitalizado ao ver o pampa. Eu sou platino, sou da região de Quiroga, do Borges, do Onetti, do Cortázar. E tudo isso é muito fundo.
Sim, mas e essa coisa específica do culto à coragem?
Uma coisa que eu repito sempre é Hay que tener cojones. Agora, o que é a coragem? A coragem não é um desafio gratuito, de fechar o bar na porrada. Às vezes a coragem é muito humilde e discreta. Existem coragens e coragens, não é? O Rio Grande do Sul tem uma tradição guerreira. É o estado do Brasil que mais guerreou, é o mais belicoso. O gaúcho não se sente fazendo parte do Brasil. Temos aqui movimentos separatistas enormes. Há muito tempo se quer uma república gaúcha. Sou contra. Esses movimentos têm muito neonazismo misturado. Enfim, todo o país tem estados com características muito próprias. Então, dizer que o gaúcho é corajoso é um pouco clichê, como dizer que o mineiro é cauteloso e desconfiado. Mas eu tenho essa força do pampa.
                                     Revista Veredas – Fevereiro de 1996

Um comentário:

  1. Ser gaucho, no sentido mais profundo e completo da palavra e' PRIVILEGIO DE POUCOS.
    Que DEUS abencoe o RIO GRANDE DO SUL E SEU POVO GUERREIRO QUE AINDA FAZ O RIO GRANDE SER O QUE E'.
    Grande abraco viventes!!!!

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