sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Doris, Antonio e Vera

                                                         
Na janela do 21º andar,
ela parecia dizer: “Sim, você
pode conquistar seu destino”


Concordo – sim, às vezes, no meio da cidade, a vida apronta algumas coisas bonitas. Semana passada, aconteceram pelo menos três. Em plena segunda-feira, de repente eu estava naquele elevador do Maksoud Plaza, ao lado de uma senhora de aparência extremamente simples e claros olhos serenos, desses que mudam de cor conforme a luz. Ela espiou a imensidão do hotel pela parede de vidro, olhou para mim atenta, sorriu e comentou: “Mas este hotel é uma cidade. Se eu morasse aqui, acho que não saia nunca”. A senhora de 68 anos, chamava-se Doris Lessing.


Conversando com ela, depois, talvez pela primeira vez na vida senti vontade de ser velho. Um velho igual a Doris Lessing, com todas aquelas características (conquistadas, você sente) e que são assim com maiúsculas mesmo (como na canção de Philip Glass e Laurie Anderson): Honestidade, Decência, Sabedoria, Dignidade, Integridade, Inteligência. Quando saí, ela ficou parada na janela do 21º andar, muito quieta em seu vestido meio amassado, olhando a cidade. Alguma coisa – nela, no ar ou em mim mesmo? – parecia dizer: “Você pode. Se quiser, você pode conquistar o seu destino, inventar a sua verdadeira vida. Sim, você pode”.

A semana continuou com um livro, entregue na portaria do meu edifício. Que peguei correndo, e fui abrindo na rua mesmo. Uma capa linda: toda branca e, no alto, o desenho de um navio sobre o recorte de um muito antigo manuscrito. Você percebe que o texto é antigo pela caligrafia, daquele tempo em que a escrita manual era quase arte. Claro, Caminho das Águas, um livro de poesia, de Antonio Fernando De Franceschi. Este é só o segundo livro dele (o primeiro chama-se Tarde Revelada), mas sempre quando pergunto a mim mesmo qualquer coisa como “o que existe na poesia mais recente depois que Ana Cristina se foi?”, respondo: “Ora, existem Rubens Rodrigues Torres, Armando Freitas Filho e Antonio Fernando. O poeta da exatidão, da emoção tão válida pela justeza da palavra que, num primeiro momento, pode até parecer frio. Não é – como ele mesmo diz, “todo poema verdadeiro/ tem algo oculto/ entrelinhas”. Os poemas de Antonio Fernando têm esse oculto, cheio de belezas.

A terceira coisa linda da semana teve nome de moça: Vera. Embora, se eu a chamasse assim, ela provavelmente reagiria e diria, arrumando a gravata: “Meu nome é Bauer, cara”. Estou falando do filme de Sérgio Toledo, que acho decididamente um dos melhores filmes nacionais dos últimos tempos. Mesmo quando, ao dizer isso, lembro de dois fracos que tenho: Arnaldo Jabor e Hector Babenco. Antes de mais nada, Vera é um filme muito bem acabado, e quem conhece um pouco do cinema brasileiro sabe como isso é raro. Desde as sequências iniciais, você percebe que o diretor está tendo um profundo amor pelo que faz. Esse amor aparece na fotografia (iluminada, de Rodolfo Sanchez), na música (pequenas facadas, de Arrigo Barnabé), na cenografia (desesperadamente vazia, de Naum Alves de Souza), no trabalho dos atores (sim, Ana Beatriz Nogueira é espantosa, e comovente na sua contensão). O Olhar de Sergio Toledo sobre o moderno vai além do folclore modernoso, da mistificação gratuita do urbano – está cheio de uma desolação árida, como a de Wim Wenders. A contraposição de vídeos, armas e foguetes, sugerem um paradoxo inquietante: no meio da tecnologia mais desenvolvida, o humano mais primário ainda não foi resolvido. O olhar de medo de Vera/Bauer/Ana Beatriz/Sergio no final – dói. Porque ninguém pode ajudar o humano que deu errado quando o social está errado, e para resolver o de dentro seria necessário corrigir o de fora. E então quem somos nós, tão impotentes e arrogantes?

Loucos, diz Doris Lessing. Enclausurados, diz Antonio Fernando. “Sou outra coisa”, diz a Vera de de Sérgio. Somos todos Veras, eu mesmo digo. Mas você pode – dizia também Mrs. Lessing. Sim, você pode.  
                                                OESP - Caderno 2 - 1987

3 comentários: