terça-feira, 23 de novembro de 2010

Pedra rolante


“Pedra que muito rola não cria musgo” – dizia minha avó quando falava de um sobrinho, Francisco. Ninguém nunca sabia direito onde ele andava: podia ser Porto Alegre, Rio, São Paulo, Paris ou Alexandria. Não é jeito de dizer, não. Ele passou mesmo vários anos no Egito. O Francisco era um exemplo perfeito do que um bom rapaz não deve nunca fazer: andar por aí assim, mudando de cidade, de trabalho, de vida, com tanta facilidade como quem muda de camisa. Pedra que se preza, para minha avó, devia ficar parada e quietinha no seu lugar, criando embaixo aquela camada grossa de musgo verdinho.

Bom, uns anos depois, já na estrada, conheci o Francisco e achei ele ótimo. Tinha visto uma porção de lugares, conhecido um monte de gente, vivido e sentido coisas que a maioria das pessoas só imagina e não tem coragem de viver. Fiquei encantado: ele era uma pessoa larga. Largueza, para mim, é qualidade muito importante nas pessoas. Foi então que entendi melhor porque sempre tinha achado musgo uma coisa muito chata.

As pessoas vivem me perguntando: “Mas, afinal, onde é mesmo que você está morando?” Nem sempre sei responder. Pode ser aqui, ali, ou um pouco aqui, outro ali. Outro dia alguém se queixou que só de endereços meus tinha umas duas páginas ocupadas (e riscadas) na cadernetinha. Até pouco tempo atrás, confesso, eu mesmo ficava angustiado com essa inquietação toda. Agora estou mais acostumado. Tem coisas da gente que não são defeito nem erro: são só jeito da gente ser. O negócio é acostumar com isso e não sofrer. Aliás, o melhor jeito, em relação a qualquer coisa, é sofrer o mínimo possível. Aquilo que os americanos chamam de relax and enjoy – mais ou menos “relaxe e curta”.

Não sei dizer mais quantas vezes mudei de casa e de cidade. Fui, por exemplo, de Santiago, no interior do Rio Grande do Sul, para Porto Alegre, de lá para São Paulo, depois Campinas, Rio de Janeiro, um tempinho em Florianópolis, na Bahia, em Paris, em Londres, Estocolmo, mais um pouquinho no Rio, e por aí vai. Só em São Paulo já morei quatro vezes, de ir embora jurando nunca mais voltar, e voltando sempre. Só em Sampa, já passei pelo Jardim América, pela Bela Vista, Vila Madalena, Jardim Paulistano, Pinheiros, Sumaré, Centro da cidade – agora estou num lugar entre o Ibirapuera e Vila Nova Conceição, que ainda não consegui descobrir o nome. Sei que tem uma feira bem na minha rua, às terças-feiras.. Estou achando um grande barato ter, pela primeira vez na vida, uma feira aqui na porta de casa. Mas não sei até quando vou achar isso.

Minto. Sei, sim. Não é de repente, é mais aos pouquinhos que acontece. Difícil explicar, mas vai dando uma coisa de você não ver mais direito nem as coisas nem as pessoas que estão à sua volta. Você vai acostumando com elas, assim como acostuma com uma cadeira, uma mesa, um fogão. Quando tudo começa a ficar igual todos os dias e você, sem perceber, começa a se movimentar como quem liga o automático e, feito robô, apenas faz coisas, sem sentir o que está fazendo – bem, para mim é porque está na hora de dar o fora. Aí a gente muda. Se não dá para mudar de cidade, muda de casa, muda de rua, de bairro (cá entre nós: massa mesmo seria poder mudar de planeta). Não há nada mais estimulante do que ver ruas e pessoas pela primeira vez. Você tem que fazer um superexercício para conseguir descobrir os jeitos particulares delas se comunicarem – sim, porque tudo isso tem um jeitinho particular. Você é novo. A maioria das pessoas que conheço vive muito desatenta de estar vivendo: elas parecem tão acostumadas com as coisas que estão em volta que é como se estivessem dormindo.

Não digo que todo mundo deva fazer a mesma coisa, e que isso é o certo. Na minha cabeça, certo é tudo aquilo que dá prazer da gente fazer, desde – claro – que não prejudique ninguém. Depois, também acho que para acordar dessa espécie de sono limoso tem muito jeitos. Pode ser ler um livro ou ver um filme provocante, de vez em quando. Num fim de semana, ir a um bar ou a um bairro onde a gente nunca foi antes. Ou bater um bom papo, daqueles verdadeiros, com uma pessoa nova. O que não pode é começar a achar tudo igual, porque aí a criatura vai engordando por dentro e criando aquele tipo de barriga que eu chamo de “barriga mental”. Umas gordurinhas no cérebro que deixam o pensamento lerdo e tiram o prazer de qualquer coisa.

Claro que viver assim, pulando de galho em galho, também tem suas desvantagens. O que se perde de correspondência, por exemplo, é um absurdo. E tem gente maravilhosa que, de repente, vai ficando longe, difícil de ver – e aí dança. Mas também acho que aquilo que é bom, e de verdade, e forte, e importante – coisa ou pessoa – na sua vida, isso não se perde. E aí lembro de Guimarães Rosa, quando dizia que “o que tem de ser tem muita força”. A gente não tem é que se assustar com as distâncias e os afastamentos que pintam.  Mas, vantagens? Ah, isso também tem. A melhor delas é conhecer gente. Não tem coisa melhor (nem pior) do que gente. E, na minha opinião, não é plantado no mesmo lugar, caminhando sempre pelas mesmas ruas, repetindo ano após ano os mesmos programas, que você vai conhecer pessoas novas.

Se fico por aqui? Vou ficando. A feira na porta de casa me encanta, o dono do bar da esquina já começou a me cumprimentar. Ontem mesmo comecei um trabalho novo, e a casa recente está pegando o jeito que gosto. Mas quando vejo no mapa uma ilha chamada Java, com o porto de Surabaya, nas bandas da Ásia – que dá uma vontade de ir pra lá, ah, isso dá. Questão de paciência. Pelo menos até o dia que eu acordar de manhã e perceber aquela camadinha de verde musguento avançando. Porque, no que depender de mim, e para desgosto de minha avó, enquanto tiver saúde vou rolando até encontrar qualquer coisa (ou pessoa) tão fantástica que me dê vontade de ficar ali para sempre. Cá entre nós, se for só a morte, também não me importo nem um pouco.

                                        Capricho - 1987

19 comentários:

  1. Esse texto tem algum livro? Como Caio 3D anos 80 ou algo assim?

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  2. Texto maravilhoso! Faz um bem danado ler coisas
    de boa qualidade, hoje em dia!

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  3. Gracias pelos comentários. E Bruna, esse blog nasceu pra textos do Caio F. que ainda não sairam em livros, como esse "Pedra Rolante", pubclicado na Capricho.

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  4. Que blog lindo, texto maravilhoso!!!
    Caio é demais ;)

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  5. Caio: sempre sensacional e inigualável!

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  6. Adorei, O que não pode é começar a achar tudo igual, porque aí a criatura vai engordando por dentro e criando aquele tipo de barriga que eu chamo de “barriga mental”. Umas gordurinhas no cérebro que deixam o pensamento lerdo e tiram o prazer de qualquer coisa.
    Ele é único!

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  7. Você vê que coisa! Eu até que tentei criar limo, mas não consegui... Todas minhas escolhas me sacodem mesmo quando aparentemente são engessadoras no princípio, como quando vem alguma coisa do nada e faz tudo rolar de novo . Esse é o meu mistério até para mim. Penso que já deveria ter me acostumado como você bem disse... Tomarei como lição.

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  8. Cara, como algo q foi publicado qdo eu tinha 8 anos pode dizer tanto da minha vida hoje? Sempre fui ciriticada por não criar muito limo, tudo bem q não viajei tanto qto no texto, mas me ressinto das mudanças por causa das desvantagens e gentes q vão ficando longe e dão saudade. Mas não é defeito né? É o nosso jeito de ser a gente... gostei! Muito!

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  9. cm vc consegue os textos?
    gostaria de saber, pq tô produzindo minha monografia sobre ele, e tudo que puder conseguir será benvindo!! vc poderia me informar?

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  10. Carol, como você bem diz, é incrível a permanência dos textos do Caio Fernando Abreu.

    Ravena: São textos que eu fui guardando por esses anos todos em pastas. E um dia pensei que seria legal se mais gente tivesse acesso a eles.

    Demais os comentários de vocês, obrigado!

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  11. que massa! Pode ter certeza de que você fez a coisa mais certa em dividí-los! como você conseguiu? você tem as revistas, os jornais? vc poderia me enviar por email? tem algum link onde eu possa baixar esses textos? Grata, desde já!

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  12. adorei e super me identifico com tudo o que você conta nesse texto!

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  13. Este comentário foi removido pelo autor.

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  14. Adoreiiiiiiiiiiii. O texto é leve, gostoso de ler sentir como se eu estivesse passando pelos lugares viajados. Parabéns

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  15. Belo! Belíssimo! maravilha de texto. idetificação total em cada palavra. trabalho lindo este teu! bjs

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  16. ler isso da um alivio*-* e uma vontade de mudar , mudar e mudar shuahsa

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  17. Parabéns pelo seu trabalho! É lindo! Mais lindo saber q cada palavra dele cai hj como se fosse nos dias q ele escreveu!

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  18. Caio pra mim ê uma daquelas pessoas que me pesa nao ter conhecido em vida...que bom que ele escreveu ❤

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  19. Que legal descobrir seu blog! Parabéns!

    Você saberia dizer se o Caio é mesmo o autor do trecho seguinte:

    "O que tem de ser, tem muita força. Ninguém precisa se assustar com a distância, os afastamentos que acontecem. Tudo volta! E voltam mais bonitas, mais maduras, voltam quando tem de voltar, voltam quando é pra ser. Acontece que entre o ainda-não-é-hora e nossa-hora-chegou, muita gente se perde. Não se perca, viu?"

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