quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Vamo comer Caetano?

                         
                                                    Umbigo do Brasil, cravado no
                                                    Centro da barriga da miséria,
                                                    Vamo comer, vamo comer poesia

“Animal arisco” – eu caminhava pela rua quando ouvi o grito. No meio do barulho, do torpor desse calor viscoso que andou fazendo. Claro, agudo, relâmpago no meio da tarde, aquele gemido. Parei, sem entender. O grito foi sendo levado para longe – “me senti sozinho/ tropeçando em meu caminho/ à procura de ajuda, um lugar, um amigo” - enquanto eu compreendia. Era Caetano Veloso cantando Fera Ferida, de Roberto e Erasmo Carlos, provavelmente num rádio de carro que se afastava.

O gemido rasgou a tarde em duas. Fiquei ali parado no meio da dor, assim (deus, quem disse isso uma vez?) “ferido de mortal beleza”. Provavelmente com aquela “expressão amarga” – como diz o Osmar Freitas Jr. – “de quem tivesse acabado de chupar (?) uma crônica de Caio Fernando de Abreu”. Olhei em volta: ninguém mais tinha ouvido. Estavam todos com uma expressão de... – bom, deixa pra lá. Não consigo entender essa pressa em rotular, carimbar, colocar em prateleira: é assim, doce, amargo, leve, pesado. Idéias feitas, congeladas, mortas. Safári no cemitério, preconceito. Fiquei ali parado, o grito vivo de Caetano na cabeça.

Então pensei: Caetano não dá mais entrevista. Tá certo. Não há nada a dizer, não há nada para explicar. Ou você entende, através da música e até do silêncio, e estamos conversados (e enriquecidos). Ou você não entende nada, porque seu repertório é outro. Então, numa gestalt, também estamos conversados. Ninguém enche o saco de ninguém, você me deixa em paz, eu te deixo em paz – certo? Fica combinado assim: se não te atrapalho, você me dá licença de ser assim do jeito que sou?

Fui pra casa ouvir mais Caetano. Deitei, aquele calor paulistano, de cimento. Peguei o release de Maria Clara Jorge – ela diz “Caetano é o umbigo do Brasil”. Sim, em vários sentidos. Aí li o que diz Renato Costa, coordenador do departamento internacional da Polygram: “Há anos Caetano dá todos os toques sem cobrar nada e o Brasil não saca. Azar do Brasil”. Azarésimo. E azar o seu, se não ouvir.

Pega o disco, tá tudo lá. O Brasil negro, já na foto (linda de Flávio Colker (sobre concepção de Luiz Zerbini) na capa, no candomblé que passeia seus axés por Depois Que o Ilê Passar e Ia Omim Bum, ou em Eu Sou Neguinha? Tá lá o discurso político em Vamo Comer: “Quem vai equacionar as pressões/ do PT, da UDR/ e fazer dessa vergonha uma nação?” Tem o cinema falado de Giulietta Massina – “ah, minha vida sozinha/ ah, tela de uma outra luz” -, tem a solidão das estradas em Noite de Hotel: “Estou a zero, sempre o grande otário”. E aquela que deve ser uma das mais belas letras (e músicas) feitas nos últimos anos neste país, O Ciúme. Numa tarde cheia de luz, no rio São Francisco, sobre toda a paisagem “paira, monstruosa, a sombra do ciúme”. O humano torturado projeta sua imagem interior sobre a paisagem indiferente, alheia à dor individual. Mas de dentro dessa tortura, que nada alivia e ninguém pode perceber, é que o ser olha e suspeita: “Tudo é perda, tudo quer buscar – cadê?”
Porque tem luz e sombra. Uma engendra a outra, uma nasce de dentro da outra. Tem amor e ódio, tem encontro e perda, tem identificação e indiferença. Tem dias em que tudo se encaixa, como no momento das peças finais dos quebra-cabeças, e tem aqueles em que tudo se desencaixa numa aflição tonta de não haver sentido nem paz, amor, futuro ou coisa alguma. Tem dias que nenhum beijo mata a fome enorme de outra coisa que seria mais (e sempre menos) que um beijo. Mas tem aqueles outros, quando um vento súbito e simples entrando pela janela aberta do carro para bater nos teus cabelos parece melhor que o mais demorado e sincero dos beijos. Precisamos dos beijos, precisamos dos ventos. Tem dias de abençoar, dias de amaldiçoar. E cada um é tantos dentro do um só que vê e adjetiva o de fora que escapa, tão completamente só no seu jeito intransferível de ver: “E eu sou só eu só eu só eu”.

A voz e a poesia de Caetano passeiam nesse limiar – Limiar é tão bonito, parece limite, parece ar, um limite no ar? – entre os opostos. Umbigo do Brasil, como diz Maria Clara/ Cacaia. Cravado no centro, origem, raiz, verdade. Vamo comer, vamo comer Caetano: bom apetite.

                                                        CADERNO 2 - OESP - 1987


sábado, 2 de outubro de 2010

Delírio Eleitoral à beira do ridículo


Porto Alegre – Ok, vamos mudar de assunto. A vida é sempre o mais importante. E o mais importante hoje, justamente às vésperas da eleição – mesmo que o papa se mate ou um Ovni atropele à Casa Branca -, é esse luxo de democracia: vamos todos votar amanhã.
Todos, não. Alguns sentirão preguiça, outros estarão doente, outros dementes, outros em trânsito. Faço parte destes últimos. Pegarei todos aqueles papéis e carimbos no correio do Menino Deus para enviar a nunca sei exatamente quem, nem quando, nem onde em São Paulo. Estivesse lá (ou aí), com alegria , orgulho e confiança votaria na honestíssima Luiza Erundina, e também em Marta Suplicy. Os outros, pensaria bem, talvez até me submetesse a uma hora de tortura televisiva assistindo ao HEG (não, não se trata de um novo vírus: é o Horário Eleitoral Gratuito) para escolher certo. Ai, meu Deus, o certo e o errado, e Brasília depois, o poder subindo à cabeça, corrupção, loterias, e os do-bem virando do-mal e os do-mal ficando cada vez mais do-mal, porque nunca que eu saiba aconteceu de um político do-mal virar do-bem...
Nos últimos dias, ocupado em catar poluidores santinhos eleitoreiros jogados na drama recém-cortada do jardim de meu pai, comecei a pensar em algo terrível. Tão terrível que disfarçava, ia tomar um café, andar de bicicleta, ler mais algumas páginas de O Homem da Mão Seca, de Adélia Prado. Só para não pensar naquilo. Assumi o pensamento quando vi Eliakin & Leila no SBT revelando que o mesmo temor atacou também Caetano Veloso, injuriado porque Enéas Carneiro ultrapassou Brizola nas pesquisas. Mais seguro, revelo para vocês aqui e agora o meu maior e mais ridículo medo pré-eleitoral – e se... o Enéas ganhar?
(Pausa longa. A princípio incrédula. Depois, paranóica).
Décadas atrás, o povo chegou a eleger o rinoceronte Cacareco (lembro da marchinha de carnaval: “eu-encontrei-o-Cacareco-tomando-chope-com-salsicha-e-rabanada”); houve também um certo macaco Tião. Houve até – credo em cruz! – Fernando Collor. Por que não Enéas Carneiro? Assim, de sarro. Ou de amargura, porque depois de tanta bobagem, feiúra, denúncias, golpes, cinismos, arrivismo, falsidade (alô, alô FHC), o eleitor poderia muito bem se decidir por aquela opinião que De Gaulle tinha sobre o Brasil – a célebre c’est pás un pays serieux. Oswald de Andrade, ou seu espírito, adoraria. Chacrinha talvez reencarnasse para ser, digamos, ministro da Fazenda. E Mazzaropi ou Oscarito para a Saúde, que tal? Uau, enfim, uma República Palhaça! Assumida, descarada.

Piada? Espero mesmo que não passe disso. Seria perigoso demais, por trás da imbecilidade aparente, Enéas parece tão fascista quanto o porco Berlusconi. Sei o que digo. Eu o conheci no final de 1990, no Aeroanta, quando Grace  Giannoukas, Angela Dip e Marcelo Mansfield (na época o grupo Harpias & Ogros) ofereceram a ele um dos troféus “Créme de la Créme”. Encarregado por Martha Góes de fazer a cobertura para esse mesmo Caderno 2, dividi uma mesa com a poeta Ledusha, a atriz Maria de Moraes e, voilá, o tal Enéas. Este, levando a sério o puro deboche. Constrangedor. E me pergunto, seria tão patética assim a desilusão do povo brasileiro a ponto de cometer esse abasurdo? Razões não faltam, sei. Eu mesmo endureci muito após o affair Ibsen Pinheiro...
Peço então en-ca-re-ci-da-men-te: amanhã votem em quem quiserem, mas NUNCA em Enéas. A comédia pode virar tragédia, gente. Já pensou quatro anos de meu-nome-é – etc, perseguição às minorias e defesa da célula-mater? Posto isso, parto para Frankfurt dia 4. Terei que ler em alguma língua estrangeira sobre o que rolou por aqui. Caso essas minhas torpes fantasias se realizem, juro que nem volto: vou direto morar em Saravejo. Anyway, da estrada, mando notícias. E juízo amanhã, hein?
                     (OESP – Caderno 2 – 2 Outubro 1994)