quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Beta, Beta, Bethânia


                          

                                                 Então ela chega e diz: “Dá
                                                 licença, rock and roll, 
                                                 que a tia vai cantar o amor


Os muitos darks que me perdoem, mas Maria Bethânia é fundamental. Sei, vocês vão dizer que ela é brega, careta, exagerada, melodramática. Pode ser. Mas essa coisa chamada vida onde estamos metidos até o pescoço, às vezes não é brega, careta, melodramática? A Vida é mais Nelson Rodrigues ou mais Clarice Lispector? Mais Augusto dos Anjos ou Emily Dickinson? Fassbinder ou Jacques Demy? Philip Glass ou Dead Kennedys? Mais Sex Pistols ou mais Cecília Meireles? Bukowski ou Bergman?

Tudo isso, sim, e muito mais. O engarrafamento às seis da tarde de uma sexta-feira de chuva, na marginal do Tietê, pode ser uma emoção-Titãs (tipo Bichos Escrotos). Transar com a garota prostituta da rua Augusta, de minissaia de couro e correntinha no tornozelo pode ser uma emoção-Dalton Trevisan. Dar um espirro bem na hora de dizer eu-te-amo pode ser uma emoção-Woody Allen. Assim por diante, cada coisa sendo uma coisa diferente. Porque o que vai sendo vivido e sentido por cada um é tão particular que, mesmo lugar comum ou já cantado em prosa e verso, é para sempre também único. Infinitiva e indivisivelmente subjetivo.

Nosa, como estou me dispersando. O que quero dizer é muito simples – adoro Maria Bethânia. Por um tempo, aposentei Eurythmics, The Cure, Talking Heads, Legião Urbana, Sting, Paul Simon – só consigo Bethânia.

Ando tomado por emoções-Bethânia. Essas, que estão morrendo à míngua, poque não é moderno ter emoções. Não é in sentir amor, envolver-se. Ficou out dizer coisas como “quero ficar com você/ e é tão fundo que eu posso dizer/ que o fim do mundo não vai chegar mais” ou “parece bolero/ te quero, te quero/ dizer que não quero/ teus beijos nunca mais” ou “quando os caminhos se separam/ não tem razão que dê mais jeito” ou “é tão difícil ficar sem você/ o teu amor é gostoso demais”. É burro cantar coisas que eu, tu, ele, nós sentimos? É brega ter desejos e carências e dores e suspiros assim, de gente?

Sentir não é brega. Ao contrário: não existe nada mais chique. Emocione-se e seja o rei de sua insensatez. Seja nobre, seja divino no desconcerto das emoções. Maria Bethânia é muito chique, e quase ninguém está vendo isso. Em Dezembros, sem querer fazer nenhuma revolução, ela chega e diz: “Dá licença, rock and roll, que a titia vai cantar o amor”. E eu peço: Crianças, cessem as guitarras, os teclados, os sintetizadores – um minuto só – e prestem atenção na voz quente dessa mulher linda do jeito inverso da beleza, cantando (que ousadia!) o amor.

Sei: a Aids está solta, e o que era possibilidade de amor agora é possibilidade de morte. Nem por isso é possível parar de amar. Você consegue? Eu, não. E não tenho medo. Sem platonismos, nem zen-budismos: quero que pinte o amor-Bethânia, dançar de rosto colado, pegar na mão à meia-luz, desenhar com a ponta dos dedos cada um dos teus traços, ficar de olho molhado só de te ver, de repente e, se for preciso, também virar a mesa, dar tapa na cara, escândalo na esquina, encher a cara de gim, te expulsar de casa e te pedir pra voltar.

Darks, pós-modernos, minimalistas, gliters, apocalípticos, concretistas, skinheads, me perdoem. Na noite de sábado, caminhando sozinho pela avenida Paulista, o quarto-crescente brilhando sobre a torre da TV Globo, uma vontade desesperada de ter alguém – as únicas canções que me vieram à mente para cantar baixinho foram canções de Bethânia. Doía fundo estar perdido na grande cidade, era completamente sem remédio ser só uma pessoazinha machucada. Mas brotou então um orgulho tão grande de ser ainda capaz de sentir o coração cheio de emoções-Bethânia que era quase como uma felicidade. Sangrada, do avesso – que importa? Era real, era vivo. Isso é muito, e Bethânia canta.

                                 (Caderno 2 – O ESP – 1987)

9 comentários:

  1. A Bethânia jamais foi brega e jamais o será, pois sempre cantou o que quis e da maneira que quis.Daí a sua soberana posição em relação ao mundo das aparências superficiais, que mergulham em modismos e mais modismos para estarem sempre na onda.Que onda é essa, eu não sei dizer.Agora uma coisa que eu posso dizer é que ela jamais se acomodou e continua até hoje a procurar caminhos novos e a se dedicar aos seu profundo ofício, que é cantar.Concordo plenamente com você, pois o sentimento e a sensibilidade são dádivas, que infelizmente nem todos possuem.Essa noite, deitado, escutei o disco "Maria"e uma das canções desse disco me fez lembrar os seus passos na Av. Paulista:"Onde andarás nessa tarde vazia, tão clara e sem fim..."

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  2. só te agradeço por ter eu lido esse texto hoje.
    "aminhando sozinho pela avenida Paulista, o quarto-crescente brilhando sobre a torre da TV Globo, uma vontade desesperada de ter alguém" "Doía fundo estar perdido na grande cidade, era completamente sem remédio ser só uma pessoazinha machucada"
    sem tirar nem por, é o que eu sinto hoje, agora, ultimamente. obrigada.

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  3. MARAVILHOSAMENTE PERFEITO!!! O MELHORRRRR, O MELHOR DE TODOS OS TEXTOS! RS...

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  4. Ai, Caio... serei pra sempre teu, meu Caio F. ... Estou indo ver Bethânia amanhã, em João Pessoa!!! Me arrepiei muito com esse texto. Sempre me emociono contigo, com Bethânias, com Clarices, com poesias; com A Poesia(!)... em suma: com a vida!!!

    MANUMAYAH :)

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  5. sem medo de ser feliz!
    adorei o texto!

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  6. A arte em suas diversificadas áreas , tem seu rei sua rainha . A música tem MARIA BETHANIA.
    " Maria o teu nome principia na palma da minha mão ..." Grande abraço e...aquele axé . bjs. Nelma Ré

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  7. Caio,

    Adorei seu texto. Parabéns!
    Bethânia, é simplesmente saber sentir...

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