segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Na trilha dos mistérios de Clarice


No último dia 25 de junho o Caderno 2 publicou uma carta de Clarice Lispector que chegara misteriosamente às minhas mãos (a amiga de uma amiga encontrara entre velhos guardados), aparentemente inédita. Na maior boa fé – porque a carta era linda e, por sua sabedoria, poderia fazer bem a muita gente – encaminhei-a para o jornal.
Não era bem assim. Do Rio, o poeta Afonso Romano de Sant’Anna telefonou informando que a carta fora escrita por Clarice à sua irmã Tânia. Affonso tem uma cópia guardada. Mais tarde, a mesma carta (ou trechos dela) foi incluída em Esboço Para Um Possível Retrato, uma espécie de pequena biografia poética escrita por Olga Borelli, grande amiga da escritora nos seus últimos anos de vida. Procurei o livro em várias livrarias para confirmar – está completamente esgotado.

Mas entre telefonemas e informações desencontradas, fui recolhendo algumas informações. Uma ótima: a Editora Ática deve publicar logo uma biografia escrita pela professora Nádia Gotlib, depois de vários anos de pesquisa. Outra nem tanto: segundo Afonso Romano, Tânia, uma das irmãs de Clarice – a outra, Elisa, é também escritora, autora do romance O Muro das Pedras, entre outros – guarda até hoje grande parte da correspondência, mas não quer cedê-la para publicação de jeito nenhum.

A verdade é que Clarice, que viveu muitos anos no exterior, acompanhando o marido diplomata, era uma grande missivista. Lygia Fagundes Telles me informa que havia muitas cartas dela para Erico Verissimo, outro também chegado num bom correios & telégrafos, naqueles tempos sem fax. E há uma história famosa sobre Lucio Cardoso, por quem Clarice teve uma grande paixão. Dois ou três dias depois de receber os originais de um romance escrito por ela na Suiça, Lucio recebeu um telegrama (cito de memória) dizendo algo como: “Favor não considerar vírgula na linha X da página V PT Abraços Clarice”.

A verdade também é que Clarice era deliberadamente misteriosa. Apagava rastros, diluía pistas. Ninguém sabe ao certo o ano de seu nascimento, na Ucrânia. Ela sempre disfarçava, mudava de assunto, confundia. Era ainda uma grande recicladora dos próprios textos. Nos anos 60 e 70, quando foi cronista do Jornal do Brasil, volta e meia republicava trechos de algum conto ou romance como crônica, com outro título. Alguns dos capítulos de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres foram publicados primeiro na coluna do JB e, mais tarde, também em A Descoberta do Mundo, a coletânea completa de seus escritos disperso (inclusive, imaginem, entrevistas que ela fez para a revista Manchete). Há quem diga até que ela enviava a mesma carta para várias pessoas....

Quem conheceu Clarice sabe: ela não era mesmo muito deste mundo. Até hoje lembro de um encontro que tivemos em Porto Alegre, em 1975. Ela – que quase não falava, fumava muito e suportava pouco as pessoas – me convidou para um café na Rua da Praia. Fomos. Silêncio denso, lispectoriano. No balcão do bar, por trás da fumaça do cigarro e com aquele sotaque estranhíssimo, de repente ela perguntou: “Como é mesmo o nome desta cidade?” E estava em Porto Alegre há três dias...

Na obra, na vida, foram muitas as lendas e mistérios deixados por Clarice Lispector. Hoje, seus livros são cultuadíssimos na Europa. Seu tradutor inglês, Giovanni Pontiero, da Universidade de Manchester, certa vez me disse que tinha certeza que, se ela não vivesse no Brasil, teria ganho o Nobel. Sofreu demais aqui. Lembro até hoje da crítica decretando seu fim quando saiu A Hora da Estrela. Fim? Bem, passaram-se 17 anos desde a sua morte, e continuamos a falar nela. E, sinceramente, se fico um tanto encabulado com a história confusa da carta, fico contente por poder trazê-la um pouco de volta.
                                              Caderno 2 – OESP – Domingo, 7 de agosto de 1994

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